Teorias do Estado Anarquistas e Marxistas

Texto de Felipe Corrêa, pdf original em: https://ithanarquista.files.wordpress.com/2013/05/felipe-corrc3aaa-teorias-do-estado-anarquistas-e-marxistas.pdf


Introdução

Esse texto aborda brevemente a crítica, formulada durante o século XX por teóricos clássicos do anarquismo, à teoria do Estado marxista e suas implicações político-estratégicas, desenvolvidas por duas correntes derivadas do marxismo clássico: a social democracia reformista e o bolchevismo. Para tanto, o trabalho pretende retornar ao debate clássico entre as teorias do Estado de Karl Marx, Friedrich Engels e Mikhail Bakunin para, a partir dele, compreender as críticas em questão e realizar uma exposição adequada do tema. Trata-se, portanto, de um breve estudo crítico comparativo entre as teorias do Estado anarquista e marxista.

O Estado para anarquistas e marxistas no século XX

Durante o século XX, os anarquistas, alguns dos quais se converteram em clássicos, realizaram severas críticas ao marxismo, tomando por base dois modelos de experiências concretas levadas a cabo neste período: o bolchevismo e a social-democracia reformista.

Piotr Kropotkin (2000, p. 90) afirmou que a ditadura do proletariado e os governos eleitos não colocavam em xeque o modelo de Estado-governo representativo, fossem suas formas monárquicas ou republicanas, o qual dava continuidade à usurpação das funções 2 políticas da sociedade por uma minoria privilegiada de classe. Kropotkin (1970, p. 133) sustentava, ainda, que a estratégia de tomada do Estado só poderia desembocar numa “nova forma de salariato e de exploração”. Errico Malatesta (1989, pp. 21; 33) criticou a “influência nefasta que a ação parlamentar exerce no desenvolvimento do socialismo revolucionário” e enfatizou que “a ditadura, mesmo que ela se intitule ditadura do proletariado, é o governo absoluto de um partido, ou melhor, dos chefes de um partido que impõem a todos seu programa particular, quando não seus próprios interesses particulares”. Rudolph Rocker (1981, p. 84) criticou a estratégia de tomada do Estado, dizendo que “no caminho do poder político, [o socialismo estatista] enterrou tudo o que originalmente havia nele de socialista”. Rocker (2007) chegou mesmo a sustentar que, no processo da Revolução Russa, os sovietes teriam sido traídos pelos bolcheviques.

Tais críticas atacaram tanto as experiências práticas bolchevique e social-democrata, quanto as concepções de seus teóricos, que consideravam a tomada do Estado, pela revolução violenta ou pelas reformas pacíficas, um elemento político-estratégico central. Vladimir I. Lênin (2007, p. 35; 38), reivindicando Marx e Engels, sustenta que o Estado, no processo revolucionário, deve ser utilizado como uma “‘força especial de repressão’ da burguesia pelo proletariado (ditadura do proletariado)” e defende que a revolução violenta “só pode, em geral, ceder lugar ao Estado proletário”. Eduard Bernstein (1997, p. 25), reivindicando Engels, defende que os socialistas devem “‘trabalhar para um incremento constante dos seus votos’ ou levar a efeito uma lenta, mas ininterrupta, propaganda da atividade parlamentar”.

O Estado para Marx, Engels e Bakunin

Na realidade, o debate político-estratégico entre os socialistas sobre a necessidade ou não de utilização do Estado como um meio de ação remete ao século XIX, quando emergem na Europa as doutrinas socialistas e teorias sociais correspondentes. Entre anarquistas e marxistas o debate acirrou-se em distintos momentos, em especial na Primeira Internacional, cuja cisão de 1872 remete-se diretamente a essa questão. Depois da cisão, Marx e Engels defenderam e fizeram aprovar uma resolução que colocava a necessidade da “unificação do proletariado em partido político” e da “conquista do poder político”. (Marx, 2012, pp. 81-82)

As raízes desse debate, que se fortalece no século XIX e avança pelo século XX, assentam-se na diversidade das teorias socialistas do Estado desenvolvidas e discutidas entre anos 1840 e 1870. A questão da conquista do poder de Estado como via ao socialismo, um dos problemas político-estratégicos mais relevantes entre os socialistas, e que fundamenta a crítica anarquista ao marxismo durante o século XX, deriva, em geral, de duas teorias 3 socialistas do Estado que possuem similaridades e diferenças, e, em particular, das teorias do Estado de Marx, Engels e Bakunin.

Pode-se dizer que, em Marx e Engels, há duas concepções fundamentais de Estado, sendo a segunda complementar à primeira. Uma delas, presente no Manifesto Comunista (2007, p. 59; 42), que considera que “o poder político é o poder organizado de uma classe para opressão de outra”; o poder, em geral, é um poder de classe, e o Estado moderno capitalista “não é senão um comitê para gerir os negócios comuns da burguesia”. O Estado é, assim, um instrumento manipulável utilizado pela classe economicamente dominante para impor sua política à sociedade. Outra, presente em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Marx (2008a), e em As Guerras Camponesas na Alemanha, de Engels (2008), que reconhece a autonomia relativa do Estado em relação às classes economicamente dominantes, como foram os casos da França de 1851, analisado por Marx, e da Alemanha, analisado por Engels. Conforme demonstra Marx (2008a), ao discutir o caso do bonapartismo francês, a manutenção do status-quo levada a cabo pelo Estado terminou por favorecer enormemente a burguesia que, mesmo não estando no comando direto do Estado, pôde, a partir da estabilidade proporcionada, desenvolver amplamente seus negócios e prosperar ainda mais. Destaca-se, aqui, a função essencial do Estado de manutenção do status-quo e, assim, das condições para a reprodução da exploração capitalista.

Em Bakunin, há uma teoria do Estado rica, complexa e pouco estudada. Bakunin (2003, p. 35) concorda que o Estado constitui uma organização feita para a dominação de classe e para a manutenção da exploração: o Estado moderno, diz, viabiliza “a organização, na mais vasta escala, da exploração do trabalho em proveito do capital concentrado em pouquíssimas mãos”. Bakunin (2008, pp. 94;) também nota que a Alemanha continua a apresentar, em 1871, “o estranho quadro de um país onde os interesses da burguesia predominam, mas onde a força política não pertence à burguesia”; na França, em 1851, constata: “o temor [da burguesia] pela revolução social, o horror pela igualdade, o sentimento de seus crimes e o temor pela justiça popular, jogaram toda essa classe decaída […] nos braços da ditadura de Napoleão III”. Bakunin nota, como Marx, que, com a ditadura de Luis Bonaparte, a maior parte dos burgueses envolveu-se “exclusiva, seriamente, ao grande negócio da burguesia, à exploração do povo”, em cuja tarefa “foram eficazmente protegidos e encorajados”.

Entretanto, conforme apontam René Berthier e Eric Vilain (2011, p. 114), pode-se afirmar que a tese da autonomia relativa do Estado, que para os autores constitui o ponto mais alto teoria do Estado de Marx e Engels, estabelece o ponto de partida da teoria do Estado de 4 Bakunin, mesmo tomando em conta as posições de Marx de A Guerra Civil na França (2008b). Para Bakunin (2003, p. 212; 2000) “quem diz Estado, diz necessariamente dominação”; trata-se de uma dominação de classe, visto que, independente de sua autonomia relativa e das classes que estão em seu controle, elas são sempre classes dominantes: “O Estado foi sempre o patrimônio de uma classe privilegiada qualquer: classe sacerdotal, classe nobiliária, classe burguesa; classe burocrática ao final.” Bakunin avança em relação à Marx e Engels em alguns aspectos. Um deles relaciona-se à sua teoria da burocracia: o Estado, uma vez criado, além de reproduzir os interesses das classes dominantes cria, ele próprio, uma classe dominante: a burocracia, que, mesmo composta por membros oriundos de distintas classes, constitui, ela mesma, uma classe com interesses próprios, dentre os quais sua manutenção no poder, sua autoconservação. (Bakunin, 2003) Essa teoria relaciona-se às noções de dialética e de materialismo de Bakunin (2001) que, ainda que conceba a economia como esfera determinante em última instância, assume que aspectos políticos e culturais possuem capacidade de influenciá-la. Outro aspecto distintivo de Bakunin (2003, p. 213) é sua caracterização geral do Estado como “o governo da imensa maioria das massas populares [que] se faz por uma minoria privilegiada”, qualquer que seja o modo de produção vigente, envolvendo, assim, uma dominação de tipo políticoburocrático, fundamentada na legitimidade e na força coercitiva, com o monopólio da força social e do poder político. Pode-se, finalmente, mencionar o aspecto relativo à dinâmica do Estado que, análoga à do capital, implica uma busca constante da expansão interna e externa, assim como a autoconservação. (Bakunin, 2003)

As posições político-estratégicas derivadas dessa teoria fundamentaram as críticas anarquistas ao socialismo estatista do século XX. Qualquer indivíduo, grupo, classe no controle do Estado constitui parte da burocracia; a manutenção do Estado conserva o governo da maioria por uma minoria privilegiada; mesmo que se busque criar um Estado provisório, ele tende a tornar-se definitivo. A tomada do Estado deveria ser substituída por outros meios para a promoção da revolução e do socialismo; particularmente, os organismos populares deveriam substituir o Estado e levar a cabo as funções políticas e econômicas da sociedade.

BIBLIOGRAFIA
BAKUNIN, Mikhail. “Aux Compagnons de l’Association Internationale des Travailleurs de Locle et de la Chaux-de-Fonds. Article 4.” In: CD-ROM Bakounine: Ouvres Completes, IIHS de Amsterdã, 2000.
_________________. Escritos Contra Marx. São Paulo: Imaginário, 2001
_________________. Estatismo e Anarquia. São Paulo: Imaginário, 2003.
_________________. “Três Conferências Feitas aos Operários do Vale de Saint-Imier”. In: O Princípio do Estado e Outros Ensaios. São Paulo: Hedra, 2008.
BERNSTEIN, Eduard. Socialismo Evolucionário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
BERTHIER, René; VILAIN, Eric. Marxismo e Anarquismo. São Paulo: Imaginário, 2011.
ENGELS, Friedrich. “As Guerras Camponesas na Alemanha”. In: A Revolução Antes da Revolução. Vol. I. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
KROPOTKIN, Piotr. A Questão Social: o humanismo libertário em face da ciência. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1970.
________________.O Estado e seu Papel Histórico. São Paulo: Imaginário, 2000. LÊNIN, V. I. O Estado e a Revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
MALATESTA, Errico. Anarquistas, Socialistas e Comunistas. São Paulo: Cortez, 1989.
MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2008a.
__________. “A Guerra Civil na França”. In: A Revolução Antes da Revolução. Vol. II. São Paulo: Expressão Popular, 2008b.
__________. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2007.
ROCKER, Rudolf. As Idéias Absolutistas no Socialismo. São Paulo: Semente, 1981.
______________. Os Sovietes Traídos pelos Bolcheviques. São Paulo: Hedra, 2007.

Fonte da imagem: http://www.deviantart.com/art/bakunin-and-marx-from-russia-with-love-290311150

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A Tirania das Organizações Sem Estrutura – Parte II

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Impotência política

Grupos inestruturados podem ser muito eficazes para fazer as mulheres falarem sobre suas vidas, mas eles não são muito bons para fazer as coisas acontecerem. A não ser que o modo de operação mude, os grupos tropeçam quando chega o momento em que as pessoas se cansam de “apenas conversar” e querem fazer algo mais. Uma vez que o movimento como um todo, na maioria das cidades, é tão inestruturado quanto os grupos de discussão individuais, ele não é muito mais eficaz em tarefas específicas do que os grupos separados. A estrutura informal está raramente suficientemente junta ou suficientemente em contato com as pessoas para ser capaz de operar eficazmente. Assim, o movimento gera muita emoção e poucos resultados. Infelizmente, as consequências de toda essa emoção não são tão inócuas quanto os resultados e a vítima é o próprio movimento.

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A Cultura da Violação

Texto de Polite Ire, original em inglês aqui


A cultura da violação não significa somente uma sociedade onde o acto físico da violação é evidente. A cultura da violação é uma cultura onde ser-se objectificada é uma norma social para a mulher, para que o medo da violação esteja sempre presente, e onde se aceita não ser possível conceber uma sociedade onde a violação não exista. Para uma descrição mais completa das implicações da cultura da violação, este blog serve de bom guia.

Existe um estudo em que se destacam a expectativa e aceitação da objectificação, do assédio, e portanto do potencial para a violação, estudo esse no qual uma alta percentagem de mulheres que trabalham em profissões dominadas por homens relatam terem passado por assédio sexual. Contudo, em lugar de culparem os autores dos assédios, as vítimas questionaram a sua própria sensibilidade, atribuindo o comportamento dos seus colegas a “coisas de homem” (Fine, 73-75). Expectativas binárias de género contribuem assim para uma cultura de culpabilização da victima [victim blaming], em que em vez de serem os homens a ter a responsabilidade de saberem comportar-se e respeitar as mulheres, são estas que têm a responsabilidade de superar uma suposta fragilidade na maneira como reagem. Para mulheres que trabalham em locais de trabalho dominados por homens, não conseguir aceitar uma tal cultura pode significar perderem o seu posto, e assim têm de escolher entre serem continuamente vítimas de assédio ou serem vítimas de desemprego.

A aceitação quotidiana desta cultura sugere que “o violador” não é um indivíduo estranho e incomum, mas sim alguém cujo comportamento espelha as expectactivas de dominação masculina dentro da sociedade. Efectivamente, a investigação empírica nunca conseguiu encontrar o “perfil” do violador “típico”, e em vez disso o que as evidências indicam é que qualquer ambiente no qual se espera que os homens demonstrem a sua masculinidade, isto é, o seu domínio sobre as mulheres, resulta numa sociedade onde a violação é mais predominante.

“Na nossa sociedade, a maneira de os homens demonstrarem as suas competências enquanto pessoas é serem “masculinos”.” (p.49)

A exigência social para que os homens apresentem qualidades masculinas indica um binarismo de género socialmente construído. Quando as qualidades humanas estão divididas em dois, quando os homens suprimem o “feminino” e as mulheres suprimem o “masculino”, a violação torna-se “o resultado lógico” (Herman, 52). Portanto, para superar a cultura da violação é necessário transformar a nossa sociedade numa sociedade em que ambos os sexos estejam igualmente capazes de aceder às multifacetadas e contraditórias qualidades humanas que até aqui têm estado bipartidas.

Muita investigação sociobiológica sobre a violação tem concluído contudo que se trata de um comportamento biológico ao invés de um comportamento social. Ainda assim estes estudos têm sido criticados por basearem as suas conclusões em extrapolações feitas a partir de estudos sobre animais. Um estudo feito por Thornhill et al concluiu que a violação teve uma função evolucionária, tendo servido como meio de os homens poderem reproduzir-se quando falhavam as tentativas de “ligação co-operativa” ou “galanteio manipulativo”. Embora o estudo reconheça a existência de causas mais directas da violação, por exemplo o desejo de dominar, etc., o que é apontado como causa fundamental é o instinto evolucionário para a reprodução. Como consequência, esta conclusão, tal como é, mostra-se demasiado fácil e preguiçosa quando confrontada com qualquer grau de evidência em contrário, repetindo obstinadamente que “isto é obra da evolução” enquanto outras causas não relacionadas com a reprodução continuam a apresentar-se (Fausto-Sterling, 193).

Ao aceitarem uma causa biológica da violação, estes estudos aceitam esta como uma parte imutável da nossa sociedade, o que tem consequências potencialmente perigosas quando se pensa em como devemos lidar com a violação, tanto em termos de punição dos violadores como em relação à prevenção – o ónus fica na vítima para que evite ser violada, ao invés de ficar nos agressores para que não cometam a violação. A responsabilidade cai assim sobre a vítima, e disto não faltarão exemplos bastante familiares. Diz-se às mulheres como fazer para não serem violadas, mudando a sua conduta, quer isto signifique não sairem sozinhas ou não beberem muito; diz-se-lhes para deixarem mais luzes acesas quando estão sozinhas em casa, para conduzirem com as janelas e portas do carro trancadas. Para evitar ser vítima de violação, uma mulher tem de viver como se todos os homens que encontra fossem potenciais violadores. A mensagem é tal que o comportamento dos violadores é eficazmente ignorado. Esta cultura de culpabilização da vítima esteve evidente na campanha anti-violação de 2008-2009 feita pela polícia de South Wales, uma campanha que incluía um cartaz dirigido às mulheres no qual se lia “Don’t be a Victim”.

Este cartaz, como aliás todas as recomendações dadas às mulheres que aqui descrevemos, não só colocam a responsabilidade da violação em cima da vítima, como também ignoram as estatísticas cruciais que mostram claramente que a vasta maioria das violações são perpetradas por homens conhecidos da vítima (frequentemente namorados ou maridos) e assim tais “conselhos” dados às mulheres são por um lado irrelevantes e por outro bastante perniciosos, porquanto geram a crença de que bastaria às mulheres serem “mais cuidadosas” e assim as violações seriam evitadas.

A teoria da causa biológica da violação é uma conclusão conveniente para aqueles que não querem a mudança social. É uma teoria que autoriza os homens a continuarem a sua dominação sobre as mulheres e permite que as normas patriarcais permaneçam incontestadas, já que a violação é considerada um comportamento evolucionário inato. Os indícios porém são fracos, sendo que o contra-argumento, de que a socialização de papéis de género cria normas de domínio masculino que são aprendidas, é muito mais convincente. Portanto a cultura da violação pode sim ser combatida, mas isso deve ser feito a nível sistémico; se quisermos realmente ver o fim da violação, não poderemos deixar o patriarcado perdurar. A cultura da violação prospera na nossa sociedade por causa do entrincheiramento de papéis binários de género. E isto também cria uma situação paradoxal em que homens que sejam delicados, atenciosos e amorosos podem declarar com a melhor das intenções que os homens devem proteger as mulheres nas suas vidas, uma intenção extraída das mesmas normas de género que permitem que os homens sejam uma ameaça. Nas palavras de Mary Edwards Walker:

“Vocês não são nossos protectores… se o fossem, de quem haveríamos nós de ser protegidas?”

white-knight

Fontes
Cordelia Fine, Delusions of Gender
Anne Fausto-Sterling, Myths of Gender
S. Rose, R.C. Lewontin & L.J. Kamin, Not in our Genes
Angela Y. Davis, Women, Race & Class
Diane Herman, The Rape Culture

A Tirania das Organizações Sem Estrutura – Parte I

Artigo de Jo Freeman, 1970

Durante os anos em que o movimento feminista se formava, dava-se grande ênfase ao que se chamava de grupos sem estrutura, sem liderança, como a forma principal do movimento. Essa ideia tinha origem numa reação natural contra a sociedade superestruturada na qual a maioria de nós se encontrava, no controle inevitável que isso dava a outros sobre nossas vidas e no elitismo persistente da esquerda e de grupos similares entre aqueles que supostamente combatiam essa superestruturação.

A ideia da “ausência de estrutura”, no entanto, passou de uma oposição saudável a essas tendências a um dogma. A ideia é tão pouco examinada quanto o termo é utilizado, mas tornou-se uma parte intrínseca e inquestionada da ideologia feminista. Para o desenvolvimento inicial do movimento, isso não importava muito. Ele definiu inicialmente seu método principal como a conscientização e o “grupo de discussão sem estrutura” era um meio excelente para esse fim. Sua flexibilidade e informalidade encorajavam a participação na discussão e o ambiente frequentemente receptivo promovia a compreensão pessoal. Se nada de mais concreto que a compreensão pessoal resultasse desses grupos, isso não importava muito, porque seu propósito, na verdade, não ia além disso.

Os problemas básicos não apareceram até que grupos de discussão individuais exauriram as potencialidades da conscientização e decidiram que queriam fazer algo mais específico. Neste ponto, eles normalmente se atrapalhavam porque a maioria dos grupos não estava disposta a mudar sua estrutura na medida em que mudava sua tarefa. As mulheres tinham comprado totalmente a ideia de “ausência de estrutura” sem perceber as limitações de seus usos. As pessoas tentavam usar o grupo “sem estrutura” e a reunião informal para fins para os quais não eram apropriados, acreditando cegamente que quaisquer outros meios seriam simplesmente opressivos.

Se o movimento quiser avançar além desses estágios elementares de desenvolvimento, ele deverá livrar-se de alguns de seus preconceitos sobre organização e estrutura. Nenhum dos dois tem nada de intrinsecamente ruim. Eles podem e freqüentemente são mau usados, mas rejeitá-los de antemão porque são mau usados é nos negar as ferramentas necessárias ao nosso desenvolvimento ulterior. Precisamos entender porque a “ausência de estrutura” não funciona.

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A importância da crítica no desenvolvimento do movimento revolucionário – IV, V, VI

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IV.

Estes problemas a que faço referência, não são, para ninguém, um assunto novo. Há 85 anos já eram assinalados incisivamente por Camillo Berneri num artigo cujo tom, a qualquer um que leve já um bom tempo de militância no movimento anarquista, lhe soará tristemente atual e familiar:

(…) Somos imaturos. Tal é demonstrado pela discussão na União Anarquista fazendo subtis as palavras partido, movimento, sem entender que a questão não é de forma mas de substância, e que o que nos falta não é a exterioridade de partido, mas a consciência de partido.

O que quero dizer por consciência de partido?

Entendo algo mais que o fermento apaixonado de uma ideia, que a genérica exaltação de ideais. Entendo o conteúdo específico de um programa partidário. Estamos desprovidos de consciência política no sentido que não temos consciência dos problemas atuais e continuamos a defender soluções adquiridas pela nossa leitura de propaganda. Somos utópicos e basta. Que haja editores nossos que sigam reeditando os escritos dos maestros sem adicionar nunca uma nota crítica demonstrativa que a nossa cultura e a nossa propaganda estão em mãos de gente que tenta manter de pé o próprio caos em vez de empurrar o movimento a sair do já pensado para esforçar-se na crítica, no que está por pensar. Que haja polémicos que tentam engarrafar o adversário em vez de buscar a verdade, demonstra que entre nós há maçons, no sentido intelectual. Andamos a engarrafar para quem o artigo é um alívio ou uma vaidade e nós temos um conjunto de elementos que entorpecem o trabalho de renovação iniciado por um punhado de independentes que prometem.

O anarquismo deve ser amplo nas suas conceções, audaz, insaciável. Se quer viver e cumprir a sua missão de vanguarda deve diferenciar-se e conservar no alto a sua bandeira embora isto possa isolar-se ao restringido círculo dos seus. No entanto, esta especificidade do seu carácter e sua missão não exclui uma maior incorporação da sua ação nas fraturas da sociedade que morre e não nas construções a priori dos arquitetos do futuro. Tal como nas investigações científicas a hipótese pode iluminar o caminho do inquérito e quando é falsa a luz apaga-se, o anarquismo deve conservar aquele conjunto de princípios gerais que constituem a base do seu pensamento e o alimento passional da sua ação, pelo que deve saber confrontar o mecanismo complicado da sociedade atual sem óculos doutrinais e sem “apegos” excessivos à integridade da sua fé (…)

Haverá chegado a hora de acabar com os fármacos das fórmulas complicadas que não veem mais além dos seus jarros cheios de sumo;  haverá chegado a hora de acabar com os charlatães que embriagam o público com belas frases de elevada sonoridade; haverá chegado a hora de acabar com os simplórios que têm três ou quatro ideias enterradas na cabeça e exercem  como labaredas de fogo sagrado do ideal distribuindo excomunhões (…)

Quem tem um grão de inteligência e de boa vontade que se esforce com o seu próprio pensamento, que trate de ler na realidade algo mais do que o que o que lê nos livros e periódicos. Estudar os problemas de hoje quer dizer erradicar as ideias não pensadas, quer dizer ampliar a esfera da própria influência como propagandista, quer dizer fazer dar um passo adiante, mesmo um bom salto em comprimento, no nosso movimento.

É preciso buscar as soluções enfrentando-se os problemas. É preciso que adotemos novos hábitos mentais. Tal e qual como o naturalismo superou a escolástica medieval lendo o grande livro da natureza em vez dos textos aristotélicos, o anarquismo superará ao pedante socialismo científico, ao comunismo doutrinário fechado a priori nas suas caixas e a todas as demais ideologias cristalizadas.

Eu entendo por anarquismo crítico um anarquismo que, sem ser céptico, não se contenta com as verdades adquiridas, com as formas simplistas, um anarquista idealista e ao mesmo tempo realista; um anarquismo, em definitivo, que insira verdades novas no tronco das suas verdades fundamentais, sabendo podar os seus ramos velhos.

Não é um trabalho de demolição fácil, o niilismo hipercrítico, mas uma renovação que enriqueça o património original, adicionando forças e novas belezas. Este trabalho temos de fazê-lo agora, porque amanhã deveremos retomar a luta, que não encaixa bem com o pensamento, especialmente para nós que nunca nos podemos retirar dos campos quando a batalha se agrava.

Camillo Berneri

(Pagine Libertarie, Milão, 20 de Novembro de 1922)

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O papel do sindicato revolucionário no dia a dia da luta de classes

O grupo de tradução partilhado do CEL_Lisboa e da AIT-SP Lisboa começou a traduzir em Janeiro o livro “Fighting for Ourselves” da Solidarity Federation (Secção do Reino Unido da IWA-AIT). Optámos por iniciar esta aventura pelo capítulo final, em que se analisa o campo de ação do anarco-sindicalismo no século XXI. Iremos publicar semanalmente cada parte deste capítulo, seguindo depois com os restantes capítulos.


O papel do sindicato revolucionário no dia a dia da luta de classes

O que estamos a descrever é por vezes referido como sindicalismo minoritário, mas isto é de certa forma enganador por dois motivos. Primeiramente, como demonstrado já anteriormente, muitos dos grandes sindicatos reformistas são na prática, em termos de presença nos locais de trabalho, organizações de minorias. Não é raro nem sequer haver ativistas sindicais num determinado local de trabalho “sindicalizado”. Mesmo quando há, o mais comum é um ou dois a trabalharem para todo um departamento ou empregador. É raro num sindicato reformista encontrarmos uma larga densidade de militantes num só local de trabalho. Portanto todos os sindicatos, em termos de atividade quotidiana, são como Emile Pouget disse, “uma minoria ativa.” Em segundo lugar, não somos uma minoria propositadamente, mas sim devido à atual situação. Nós, é claro, procuramos a mais ampla adoção possível dos princípios e métodos anarco-sindicalistas por toda a classe trabalhadora. Apenas não vemos razão para esperar até esse momento para nos organizarmos. Precisamos de usar a nossa capacidade de organização nas lutas do aqui e agora.

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A importância da crítica no desenvolvimento do movimento revolucionário – I, II, III

O seguinte artigo foi traduzido por Liliana Silva (CEL_Lisboa) e será lançado distribuído em três publicações, sendo esta a primeira. A autoria é de José Antonio Gutiérrez e foi pela primeira vez publicado no site anarkismo.net

I.

Não é pouco frequente que escutemos, quando se fala das diferenças entre o anarquismo e as outras correntes de esquerda, que esta seja uma corrente “livre de dogmas”, “aberta sobre si mesma” e “dada ao desenvolvimento mediante a crítica livre”. Isto tem se repetido exaustiva e insaciavelmente, assumindo-se em comum tal coisa como uma virtude suprema do anarquismo. Contudo, ao menor contacto com a verdade dos círculos anarquistas, entramos numa realidade bem diferente destas declarações auto-complacentes. Apesar de tudo o que se diz acerca da falta de “dogmatismo” no anarquismo, o que encontramos frequentemente é a falta de reflexão sistemática juntamente com uma maior desobediência a dogmatismos, onde a análise tranquila da realidade é substituída por uma série de categorias apriorísticas e incompatíveis com a mesma. Longe de encontrar um ambiente favorável ao desenvolvimento da crítica, encontramos um movimento paranóico que tende a levar a crítica como um ataque, sendo demasiado tímido para discutir em termos efetivos as verdadeiras variações junto do seu seio. Assim, encontramos um movimento que, longe de aceitar as diferenças, discutindo-as ativamente, está sempre pronto a excomungá-las. Tal coisa não deriva desta ou daquela publicação, desta ou daquela personalidade do movimento (embora hajam claramente aqueles que levam esta tendência a níveis patológicos), sendo sim um defeito profundamente enraizado no movimento libertário que afecta praticamente todos os seus sectores e correntes.

Na verdade, o anarquismo ainda tem muitas falhas. Enquanto movimento, sofremos de bastantes coisas, este é ainda pouco desenvolvido, apesar da nossa enorme história. No entanto uma das carências que mais nos atinge é a ausência de uma tradição autêntica de debate. Porque onde não há discussão há dogmatismo e onde há dogmatismo, há ignorância. Onde a discussão não surge livremente, o que prevalece é a falta de dinamismo nas ideias e a desconexão com a realidade. Em semelhante ambiente não é possível proporcionar-se o crescimento de um movimento saudável, com ambições de transformar o mundo atual.

II.

Carecemos de uma tradição de discutir. Estamos demasiado acostumados a “denunciarmo-nos” em vez de discutir. Há muitos do nosso movimento que são mais próximos ao espírito de Torquemeda que ao espírito de Bakunin. Há muitos que preferem desperdiçar o seu tempo a “vigiar” os passos dos outros anarquistas e a denunciar o que consideram como um desvio, ao invés de contribuir para a construção concreta de um movimento. Assim, o anarquismo aparece em vez de uma ferramenta de transformação do mundo, mais como um conjunto de dogmas elementares, de rudimentos políticos mal dirigidos, de slogans vagos e gerais que substituem a reflexão política séria. A simplificação remove espaço ao pensamento articulado. Temos demasiados defensores auto-proclamados da fé e demasiado poucos anarquistas dispostos a desafiar o presente para explorar novos caminhos para o anarquismo num mundo que não deixa de girar.

Em vez de aceitar as diferenças de opinião como tal e proceder a alterá-las, respeitosamente, energeticamente e sempre com um espírito construtivo, denunciamo-las e desqualificamo-las. Não sabemos debater e frequentemente as nossas discussões têm-se transformado em questões de princípio e todas as divergências táticas são elevadas à categoria dos princípios eternos do anarquismo. Pierre Monatte, o velho anarco-sindicalista francês que se queixava no congresso de Amesterdão (em 1907!) de que “Existem camaradas, que, por tudo, incluindo pelas coisas mais fúteis, sentem necessidade de levantar questões de princípio”. Dito isto, parece que a cada diferença estamos a julgar a razão de sermos anarquistas e as posições divergentes são caricaturadas como “autoritárias”, “totalitárias”, “marxistas”, “reformistas” etc… Rótulos bastante úteis para evitar abordar as discussões de maneira política e não histérica. No nosso movimento, lamentavelmente, tende-se a adornar, qualquer argumentação, com um sem número de adjetivos qualificativos que não apontam nada, absolutamente nada, ao esclarecimento do assunto em debate. Assim, cada debate em torno do anarquismo termina num conflito para ver quem é mais anarquista, quem é que conserva a linha sagrada… e não quem tem a razão à luz da realidade.

Dá a entender que neste ambiente de “denúncias” e ausência de debate, a própria realidade não passa de um aspecto secundário que pouco ou nada contribui para qualquer matéria que esteja em cima da mesa.

III.

Este sectarismo e dogmatismo também se vêem refletidos na nossa propaganda. Temos inclusivamente chegado a extremos em que publicações anarquistas completas gastam uma enorme quantidade de tinta e papel em atacar outros anarquistas, em vez de discutir saudavelmente ou atacar aqueles que realmente fodem a vida a milhões de pessoas neste mundo. Quem age desta maneira causa um enorme dano ao movimento: não somente alimentando tendências centrípetas no anarquismo mas persuadindo leitores não familiarizados com as nossas ideias, de que o anarquismo é um movimento de espírito mesquinho, estreito e pequeno, deslumbrado pelas suas próprias vaidades e insensível aos verdadeiros problemas do nosso tempo. Porquê unir-me a um movimento que está demasiado ocupado com a tarefa inquisitorial para se preocupar com a problemática do quotidiano do conjunto de oprimidos, pobres, explorados e marginalizados?

Esta virulência nos ataques a quem pensa ou age de maneira diferente e este sectarismo, têm chegado ao cúmulo com as possibilidades abertas pela internet e pela comunicação virtual. Hoje em dia qualquer um pode insultar cobarde e gratuitamente desde a comodidade da sua casa e com o brinde da proteção pelo anonimato, organizações ou referentes do movimento libertário que estão a dar a sua cara e pele. Qualquer um pode dar “rédia solta” aos seus incentivos destrutivos e ao seu espírito miserável para condenar os esforços levantados, muitas vezes com enormes sacrifícios por camaradas que se estão a dar aos atos que podem levar-nos a uma alternativa libertária. Com todas as possibilidades abertas pela internet para trocar experiências e discutir, é claro que a maioria dos fóruns são bastante pobres e que onde há mais tráfico de comentários, são apenas para insultar ou desqualificar. Esta é uma realidade extremamente triste e dolorosa para quem quer ser honesto nesta luta.

Isto é próprio de movimentos alienados da realidade, e na verdade, ainda nas fileiras do anarquismo existem muitos que carecem de contacto – num sentido orgânico, obviamente – com o mundo popular ou carecem de qualquer esforço para levantar um trabalho construtivo junto dos explorados. A luta não basta conhecê-la pelos livros da história, sendo que devemos saber fazê-la acontecer no dia-a-dia. Com gente desenraizada das lutas e organizações populares cremos que é difícil um debate efetivamente construtivo, pois ao carecer da experiência prática, são incapazes de manter a discussão no plano da realidade e são facilmente arrastados ao Olimpo das abstrações principais. E daí, às denúncias de “traição ao anarquismo”. Este é o seu verdadeiro fundamento, e portanto frente às diferenças, a sua reação natural é a de se refugiar na seguridade da sua própria facção, um punhado de guardiões da fé.

José Antonio Gutiérrez

Continuação: https://apoiomutuopt.wordpress.com/2017/03/09/a-importancia-da-critica-no-desenvolvimento-do-movimento-revolucionario-iv-v-vi/

Versão ES

A Organização II, Malatesta

Estando admitida a existência de uma coletividade organizada sem autoridade, isto é, sem coerção, caso contrário, a anarquia não teria sentido, falemos da organização do partido anarquista.

Mesmo nesses casos, a organização nos parece útil e necessária. Se o partido, ou seja, o conjunto dos indivíduos que têm um objetivo em comum e se esforçam para alcançá-lo, é natural que se entendam, unam suas forças, compartilhem o trabalho e tomem todas as medidas adequadas para desempenhar esta tarefa. Permanecer isolado, agindo ou querendo agir cada um por sua conta, sem se entender com os outros, sem preparar-se, sem enfeixar as fracas forças dos isolados, significa condenar-se à fraqueza, desperdiçar sua energia em pequenos atos ineficazes, perder rapidamente a fé no objetivo e cair na completa inação.

Mas isto parece de tal forma evidente que, ao invés de fazer sua demonstração, responderemos aos argumentos dos adversários da organização.

Antes de mais nada, há uma objeção, por assim dizer, formal. “Mas de que partido nos falais? Dizem-nos, nem sequer somos um, não temos um programa”. Este paradoxo significa que as idéias progridem, evoluem continuamente, e que eles não podem aceitar um programa fixo, talvez válido hoje, mas que estará com certeza ultrapassado amanhã.

Seria perfeitamente justo se se tratasse de estudantes que procuram a verdade, sem se preocuparem com as aplicações práticas. Um matemático, um químico, um psicólogo, um sociólogo podem dizer que não há outro programa senão o de procurar a verdade: eles querem conhecer, mas sem fazer alguma coisa. Mas a anarquia e o socialismo não são ciências: são proposições, projetos que os anarquistas e os socialistas querem por em prática e que, conseqüentemente, precisam ser formulados como programas determinados. A ciência e a arte das construções progridem a cada dia. Mas um engenheiro, que quer construir ou mesmo demolir, deve fazer seu plano, reunir seus meios de ação e agir como se a ciência e a arte tivessem parado no ponto em que as encontrou no início de seu trabalho. Pode acontecer, felizmente, que ele possa utilizar novas aquisições feitas durante seu trabalho sem renunciar à parte essencial de seu plano. Pode acontecer do mesmo modo que as novas descobertas e os novos meios industriais sejam tais que ele se veja na obrigação de abandonar tudo e recomeçar do zero. Mas ao recomeçar, precisará fazer novo plano, com base no conhecimento e na experiência; não poderá conceber e por-se a executar uma construção amorfa, com materiais não produzidos, a pretexto que amanhã a ciência poderia sugerir melhores formas e a indústria fornecer materiais de melhor composição.

Entendemos por partido anarquista o conjunto daqueles que querem contribuir para realizar a anarquia, e que, por consequência, precisam fixar um objetivo a alcançar e um caminho a percorrer. Deixamos de bom grado às suas elucubrações transcendentais os amadores da verdade absoluta e de progresso contínuo, que, jamais colocando suas ideias à prova, acabam por nada fazer ou descobrir.

A outra objeção é que a organização cria chefes, uma autoridade. Se isto é verdade, se é verdade que os anarquistas são incapazes de se reunirem e de entrarem em acordo entre si sem se submeter a uma autoridade, isto quer dizer que ainda são muito pouco anarquistas. Antes de pensar em estabelecer a anarquia no mundo, devem pensar em se tornar capazes de viver como anarquistas. O remédio não está na organização, mas na consciência perfectível dos membros.

Evidentemente, se numa organização, deixa-se a alguns todo o trabalho e todas as responsabilidades, se nos submetemos ao que fazem alguns indivíduos, sem pôr a mão na massa e procurar fazer melhor, esses “alguns” acabarão, mesmo que não queiram, substituindo a vontade da coletividade pela sua. Se numa organização todos os membros não se interessam em pensar, em querer compreender, em pedir explicações sobre o que não compreendem, em exercer sobre tudo e sobre todos as suas faculdades críticas, deixando a alguns a responsabilidade de pensar por todos, esses “alguns” serão os chefes, as cabeças pensantes e dirigentes.

Todavia, repitamos, o remédio não está na ausência de organização. Ao contrário, nas pequenas como nas grandes sociedades, excetuando a força brutal, a qual não nos diz respeito no caso em questão, a origem e a justificativa da autoridade residem na desorganização social. Quando uma coletividade tem uma necessidade e seus membros não estão espontaneamente organizados para satisfazê-la, surge alguém, uma autoridade que satisfaz esta necessidade servindo-se das forças de todos e dirigindo-as à sua maneira. Se as ruas são pouco seguras e o povo não sabe se defender, surge uma polícia que, por uns poucos serviços que presta, faz com que a sustentem e a paguem, impõe-se a tirania. Se há necessidade de um produto e a coletividade não sabe se entender com os produtores longínquos para que eles enviem esse produto em troca por produtos da região, vem de fora o negociante que se aproveita da necessidade que possuem uns de vender e outros de comprar e impõe os preços que quer a produtores e consumidores.

Como vedes, tudo vem sempre de nós: quanto menos estávamos organizados, mais nos encontrávamos sob a dependência de certos indivíduos. E é normal que tivesse sido assim.

Precisamos estar relacionados com os camaradas das outras localidades, receber e dar notícias, mas não podemos todos nos correspondermos com todos os camaradas. Se estamos organizados, encarregamos alguns camaradas de manter a correspondência por nossa conta; trocamo-os se eles não nos satisfazem, e podemos estar informados sem depender da boa vontade de alguns para obter uma informação. Se, ao contrário, estamos desorganizados, haverá alguém que terá os meios e a vontade de corresponder; ele concentrará em suas mãos todos os contatos, comunicará as notícias como bem quiser, a quem quiser. E se tiver atividade e inteligência suficientes, conseguirá, sem nosso conhecimento, dar ao movimento a direção que quiser, sem que nos reste a nós, a massa do partido, nenhum meio de controle, sem que ninguém tenha o direito de se queixar, visto que este indivíduo age por sua conta, sem mandato de ninguém e sem ter que prestar contas a ninguém de sua conduta.

Precisamos de um jornal. Se estamos organizados, podemos reunir os meios para fundá-lo e fazê-lo viver, encarregar alguns camaradas de redigi-lo e controlar sua direção. Os redatores do jornal lhe darão, sem dúvida, de modo mais ou menos claro, a marca de sua personalidade, mas serão sempre pessoas que teremos escolhido e que poderemos substituir. Se, ao contrário, estamos desorganizados, alguém que tenha suficiente espírito de empreendimento fará o jornal por sua própria conta: encontrará entre nós os correspondentes, os distribuidores, os assinantes, e fará com que sirvamos seus desígnios, sem que saibamos ou queiramos. E nós, como muitas vezes aconteceu, aceitaremos ou apoiaremos este jornal, mesmo que não nos agrade, mesmo que tenhamos a opinião de que é nocivo à Causa, porque seremos incapazes de fazer um que melhor represente nossas idéias.

Desta forma, a organização, longe de criar a autoridade, é o único remédio contra ela e o único meio para que cada um de nós se habitue a tomar parte ativa e consciente no trabalho coletivo, e deixe de ser instrumento passivo nas mãos dos chefes.
Se não fizer nada e houver inação, então, certamente, não haverá nem chefe, nem rebanho; nem comandante, nem comandados, mas, neste caso, a propaganda, o partido, e até mesmo a discussão sobre a organização, cessarão, o que, esperamos, não é o ideal de ninguém…

Contudo, uma organização, diz-se supõe a obrigação de coordenar sua própria ação e a dos outros, portanto, violar a liberdade, suprimir a iniciativa. Parece-nos que o que realmente suprime a liberdade e torna impossível a iniciativa é o isolamento que produz a impotência. A liberdade não é direito abstrato, mas a possibilidade de fazer algo. Isto é verdade para nós como para a sociedade em geral. É na cooperação dos outros que o homem encontra o meio de exercer sua atividade, seu poder de iniciativa.

Evidentemente, organização significa coordenação de forças com um objetivo comum, e obrigação de não promover ações contrárias a este objetivo. Mas quando se trata de organização voluntária, quando aqueles que dela fazem parte têm de fato o mesmo objetivo e são partidários dos mesmos meios, a obrigação recíproca que a todos engaja obtém êxito em proveito de todos. Se alguém renuncia a uma de suas idéias pessoais por consideração à união, isto significa que acha mais vantajoso renunciar a uma idéia, que, por sinal, não poderia realizar sozinho, do que se privar da cooperação dos outros no que acredita ser de maior importância.

Se, em seguida, um indivíduo vê que ninguém, nas organizações existentes, aceita suas idéias e seus métodos naquilo que têm de essencial, e que em nenhuma organização pode desenvolver sua personalidade como deseja, então estará certo em permanecer de fora. Mas, se não quiser permanecer inativo e impotente, deverá procurar outros indivíduos que pensem como ele, e tornar-se iniciador de uma nova organização.

Uma outra objeção, a última que abordaremos, é que, estando organizados, estamos mais expostos à repressão governamental.

Parece-nos, ao contrário, que quanto mais unidos estamos, mais eficazmente nos podemos defender. Na realidade, cada vez que a repressão nos surpreendeu enquanto estávamos desorganizados, colocou-nos em debandada total e aniquilou nosso trabalho precedente. Quando estávamos organizados, ela nos fez mais bem do que mal. Assim também no que concerne ao interesse pessoal dos indivíduos: por exemplo, nas últimas repressões, os isolados foram tanto e talvez mais gravemente atingidos do que os organizados. É o caso, organizados ou não, dos indivíduos que fazem propaganda individual. Para aqueles que nada fazem e ocultam suas convicções, o perigo é certamente mínimo, mas a utilidade que oferecem à Causa também o é.
O único resultado, do ponto de vista da repressão, que se obtém por estar desorganizado é autorizar o governo a nos recusar o direito de associação e tornar possível monstruosos processos por associação delituosa. O governo não agiria dessa forma em relação às pessoas que afirmam de modo altivo e público, o direito e o fato de estarem associados e, se ousasse fazê-lo, isto se voltaria contra ele e em nosso proveito.

De resto, é natural que a organização assuma as formas que as circunstâncias aconselham e impõem. O importante não é tanto a organização formal, mas o espírito de organização. Podem acontecer casos, durante o furor da reação, em que seja útil suspender toda correspondência, cessar todas as reuniões: será sempre um mal, mas se a vontade de estar organizado subsiste, se o espírito de associação permanece vivo, se o período precedente de atividade coordenada multiplicou as relações pessoais, produziu sólidas amizades e criou um real acordo de idéias de conduta entre os camaradas, então o trabalho dos indivíduos, mesmo isolados, participará do objetivo comum. E encontrar-se-á rapidamente o meio de nos reunirmos de novo e repararmos os danos sofridos.

Somos como um exército em guerra e podemos, segundo o terreno e as medidas tomadas pelo inimigo, combater em massa ou em ordem dispersa: o essencial é que nos consideremos sempre membros do mesmo exército, que obedeçamos todos às mesmas idéias diretrizes e que estejamos sempre prontos a nos reunirmos em colunas compactas quando for necessário e quando se puder fazer algo.

Tudo o que dissemos se dirige aos camaradas que são de fato adversários do princípio da organização. Àqueles que combatem a organização, somente porque não querem nela entrar, ou não são aceitos, ou não simpatizam com os indivíduos que dela fazem parte, dizemos: façam com aqueles que estão de acordo com vocês outra organização. É verdade, gostaríamos de poder estar, todos nós, de acordo, e reunir em um único feixe poderoso todas as forças do anarquismo. Mas não acreditamos na solidez das organizações feitas à força de concessões e de restrições, onde não há entre os membros simpatia e concordância real. É melhor estarmos desunidos que mal unidos. Mas gostaríamos que cada um se unisse com seus amigos e que não houvessem forças isoladas, forças perdidas.

Errico Malatesta, primeira edição em Agitazione de Ancone, 11/07/1897

retirado de https://www.marxists.org/portugues/malatesta/1897/07/11.htm

De organização de propaganda a sindicato revolucionário

O grupo de tradução partilhado do CEL_Lisboa e da AIT-SP Lisboa começou a traduzir em Janeiro o livro “Fighting for Ourselves” da Solidarity Federation (Secção do Reino Unido da IWA-AIT). Optámos por iniciar esta aventura pelo capítulo final, em que se analisa o campo de ação do anarco-sindicalismo no século XXI. Iremos publicar semanalmente cada parte deste capítulo, seguindo depois com os restantes capítulos.


ANARCO-SINDICALISMO NO SÉCULO XXI

Introdução

Neste último capítulo, apresentamos a nossa visão sobre o anarco-sindicalismo hoje. Analisamos desde como passar de uma simples organização de propaganda política para um sindicato revolucionário capaz de tomar a iniciativa de organizar e catalisar a luta de classes no âmbito económico e social.  Fulcral a esta estratégia é o potencial da ação direta para proporcionar confiança, capacidade e auto-organização dentro da classe trabalhadora, e assim lutar servindo como “escola do socialismo”. Defendemos que um sindicato revolucionário é uma componente essencial para um movimento revolucionário dos trabalhadores. Não só para a organização e catalisação da luta, como também para fornecer tanto uma infraestrutura física como organizacional para a classe operária, e um ponto de partida para inúmeras iniciativas de anti-opressão, auto-educação e cultura, tanto dentro desta como para além das suas fileiras. Apresentamos como é que este tipo de organização política e económica pode ajudar o reaparecimento de um movimento militante e revolucionário dos trabalhadores e a necessidade de unificar todos os trabalhadores revolucionários do mundo. Para finalizar, iremos fazer um esboço de como uma revolução social pode vir a ser numa escala mundial e o papel revolucionário que os sindicatos revolucionários devem ter nesse processo.

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O Papel das Graduadas

(Nota inicial: o artigo abaixo está contextualizado nas lutas estudantis do estado espanhol, porém a ideia geral também se aplica a Portugal)

Durante os últimos anos tens andado a estudar muito, a stressar nas épocas de exames, a pagar as matrículas uma, duas, três vezes ou mais… e também te inscreveste no instituto de línguas para sacar aquele nível de Inglês, talvez pensas que o tempo que dedicaste à militância no movimento estudantil podias tê-lo dedicado aos estudos e quem sabe assim não tivesses repetido esta ou aquela cadeira… ou até evitado aquele curso desastroso em que quase não passavas a nenhuma.

É bem provável que chegues a pensar isto, ou algo parecido, se a tua situação for a de estar a acabar a universidade e durante os teus anos na mesma havias estado no movimento estudantil. Isto é assim porque nos últimos anos, poucos ou nenhuns são os casos em que as organizações estudantis ou o movimento estudantil onde existe, tenham tido pretensões reais de transformar a sociedade, de melhorar-la.

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