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Feminismo, Classe e Anarquismo

Artigo de Deirdre Hogan, feminista anarquista irlandesa, traduzido de Anarkismo.net


A relação entre a sociedade de classes e o capitalismo

Uma característica definidora da sociedade capitalista é que ela está amplamente divida em duas classes principais: a classe capitalista (burguesia), composta por grandes proprietários de negócios, e a classe trabalhadora (proletariado), composta mais ou menos por todas as outras pessoas – a grande maioria que precisa de trabalhar por um salário. Existem, é claro, muitas áreas cinzentas dentro desta definição da sociedade de classes, e a própria classe trabalhadora não é composta por um grupo homogéneo de pessoas, já que inclui, por exemplo, trabalhadores não qualificados bem como a maioria do que chamamos de classe média, e portanto pode haver diferenças muito significativas em termos de rendimentos e oportunidades para diferentes setores desta classe trabalhadora assim amplamente definida.

“Classe média” é um termo problemático visto que, embora de uso frequente, raramente é claro a quem exatamente se refere. Habitualmente, “classe média” refere-se a trabalhadores como os profissionais liberais, a pequenos empresários e a cargos de gestão inferiores ou intermédios. Seja como for, estas camadas intermédias não são realmente uma classe independente, na medida em que não independem do processo de exploração e acumulação de capital que é o capitalismo. Elas geralmente estão nas margens de uma das duas classes fundamentais, capitalistas e trabalhadores.[1]

O importante quando entendemos a sociedade como dividida em duas classes fundamentais é perceber que a relação económica entre as ditas classes, os grandes empresários e as pessoas que para eles trabalham, é baseada na exploração, e portanto estas duas classes têm interesses materiais fundamentalmente opostos.

O capitalismo e os negócios são, por natureza, orientados para a obtenção de lucro. O trabalho feito por um funcionário no seu emprego gera riqueza. Alguma desta riqueza é dada ao funcionário no seu pacote salarial, sendo o restante retido pelo patrão, somando aos seus lucros (se o funcionário não fosse lucrativo, não estaria empregado). Deste modo, o empresário explora o funcionário e acumula capital. É do interesse do empresário maximizar os lucros e manter baixos os custos como pagamento de salários; é do interesse do funcionário maximizar o seu ordenado e as condições laborais. Este conflito de interesses, e a exploração de uma classe de pessoas por outra classe minoritária, é inerente à sociedade capitalista. Os anarquistas visam, em última instância, abolir o sistema de classes capitalista e criar uma sociedade sem classes.

A relação entre sexismo e capitalismo

O sexismo é uma fonte de injustiça que difere em alguns aspetos da exploração de classe do tipo acima abordado. A maioria das mulheres vive e trabalha com homens durante, pelo menos, boa parte das suas vidas; mantêm relações estreitas com vários homens – o pai, o irmão, o companheiro, o marido ou amigos. Mulheres e homens não têm interesses diretamente opostos; não pretendemos abolir os sexos mas sim a hierarquia de poder existente entre os sexos e criar uma sociedade onde mulheres e homens possam viver juntos livremente e como iguais.

A sociedade capitalista depende da exploração de classe. No entanto, não depende do sexismo e, em teoria, poderia acomodar em larga medida um tratamento similar para mulheres e homens. Isto é evidente se olharmos para o que a luta pela libertação das mulheres tem conseguido em muitas sociedades ao longo dos últimos, digamos, 100 anos, nos quais houve melhorias radicais na situação da mulher e nos pressupostos subjacentes sobre quais os papéis naturais e adequados às mulheres. O capitalismo, entretanto, adapotou-se às mudanças no papel e estatuto da mulher na sociedade.

Por conseguinte, o fim do sexismo não conduzirá necessariamente ao fim do capitalismo. Do mesmo modo, o sexismo também poderá permanecer após a abolição do capitalismo e das classes. O sexismo é possivelmente a forma mais antiga de opressão, e não antecede apenas o capitalismo; há evidências da existência de sexismo em formas anteriores de sociedade de classes.[2] Ao passo que as sociedades desenvolveram a natureza exata da opressão das mulheres, a forma particular que esta toma tem mudado. Sob o capitalismo a opressão das mulheres tem um caráter particular, sendo que o capital aproveitou esta opressão histórica para maximizar lucros.

Mas quão realista é o fim da opressão das mulheres no capitalismo? As mulheres enquanto sexo são oprimidas de muitas maneiras na sociedade atual – economicamente, ideologicamente, fisicamente, e assim por diante – e é provável que o prosseguimento da luta feminista leverá a novas melhorias na condição da mulher. Seja como for, e embora seja possível antever vários aspetos do sexismo esboroando-se como consequência da luta, certas características do capitalismo tornam altamente improvável a completa igualdade económica entre mulheres e homens. Isto porque o capitalismo tem por base a necessidade de maximizar lucros, e num sistema assim as mulheres estão em natural desvantagem.

Na sociedade capitalista, a capacidade de dar à luz é um encargo. A condição biológica das mulheres implica que (se tiverem filhos) elas terão de passar pelo menos algum tempo ausentes de qualquer trabalho remunerado. Essa mesma função biológica também as torna responsáveis em última instância por qualquer criança a seu cargo. Em consequência, a licença de maternidade paga, o subsídio monoparental, a licença para cuidar de crianças doentes, creche e estabelecimentos de acolhimento de crianças gratuitos, etc., serão sempre particularmente importantes para as mulheres. Por esta razão, no capitalismo as mulheres são economicamente mais vulneráveis que os homens: os ataques a conquistas como creches gratuitas, subsídio de maternidade e outros sempre afetarão desproporcionalmente mais as mulheres do que os homens. Além do mais, sem uma plena igualdade económica é difícil ver o fim das relações desiguais de poder entre homens e mulheres e a ideologia associada do sexismo. Assim, ainda que possamos admitir que o capitalismo poderia acomodar a igualdade das mulheres em relação aos homens, a realidade é que a concretização plena desta igualdade é muito improvável no capitalismo. Isto simplesmente porque existe uma desvantagem económica vinculada à biologia das mulheres, que torna a sociedade capitalista baseada no lucro inerentemente enviesada em desfavor das mulheres.

A luta pela emancipação das mulheres nos movimentos de classe trabalhadora

Um dos melhores exemplos de como a luta pela mudança pode trazer mudanças reais e duradouras na sociedade são as grandes melhorias no estatuto, nos direitos e na qualidade de vida das mulheres que a luta feminista alcançou em muitos países ao redor do mundo. Sem esta luta (a que chamarei feminismo, embora nem toda gente que luta contra a subordinação das mulheres se tivesse identificado como feminista), nós as mulheres claramente não teríamos tido os enormes ganhos que tivemos.

Historicamente, a luta pela emancipação das mulheres foi evidente dentro do anarquismo e de outros movimentos socialistas. Contudo, estes movimentos com um todo têm tido uma relação um tanto ambígua com a libertação das mulheres e com a luta feminista mais ampla.

Embora tenha sido sempre central ao anarquismo uma ênfase na abolição de todas as hierarquias de poder, o anarquismo tem as suas raízes na luta de classes, na luta pelo derrube do capitalismo, com o objetivo definido de criar uma sociedade sem classes. Como a opressão das mulheres não está tão intimamente amarrada ao capitalismo como está a luta de classes, a libertação das mulheres tem sido historicamente vista, e em grande medida cotinua a ser vista, como um objetivo secundário à criação de uma sociedade sem classes, não tão importante nem tão fundamental como a luta de classes.

Mas para quem é que o feminismo não é importante? Certamente, para muitas mulheres em movimentos socialistas era vital a ideia de que uma profunda transformação nas relações de poder entre mulheres e homens fazia parte do socialismo. Contudo, tendia a haver mais homens que mulheres nos círculos socialistas e os homens desempenhavam um papel dominante. As reivindicações das mulheres eram marginalizadas por causa da primazia da classe e também porque, se as questões que afetavam os operários também afetavam as operárias de modo semelhante, o mesmo não era verdade para as questões particulares à opressão das mulheres enquanto sexo. A igualdade social e económica das mulheres era por vezes vista como em conflito com os interesses materiais e o conforto dos homens. A igualdade das mulheres exigia profundas mudanças na divisão do trabalho tanto em casa como no emprego assim como em todo o sistema social de autoridade masculina. Alcançar a igualdade das mulheres também implicaria uma reavaliação da auto-identidade, em que a “identidade masculina” não poderia mais depender de ser vista como mais forte ou mais capaz que as mulheres.

As mulheres tendiam a fazer a conexão entre emancipação pessoal e emancipação política, na esperança de que o socialismo geraria novas mulheres e novos homens pela democratização de todos os aspetos das relações humanas. Porém elas achavam muito difícil, por exemplo, convencer os seus camaradas de que a divisão desigual do trabalho em casa era uma questão política importante. Nas palavras de Hannah Mitchell, ativa enquanto socialista e feminista por volta do início do século XX em Inglaterra, sobre o seu duplo turno de trabalho dentro e fora de casa:

“Mesmo o meu domingo de lazer tinha acabado, pois cedo descobri que muito da conversa socialista sobre liberdade era apenas conversa e estes jovens socialistas estavam a contar com jantares de domingo e enormes chás com bolos caseiros, carnes empanadas e tortas exatamente como os seus colegas reacionários.” [3]

As mulheres anarquistas em Espanha, na altura da revolução social de 1936, tiveram queixas semelhantes, achando que a igualdade entre mulheres e homens não se deu satisfatoriamente nas relações pessoais íntimas. Martha Ackelsberg no seu livro Mulheres Livres da Espanha observa que, embora a igualdade entre mulheres e homens tivesse sido adotada oficialmente pelo movimento anarquista espanhol já em 1872:

“Praticamente todas as minhas informantes lamentaram que, não importa o quão militantes eram até mesmo os mais comprometidos anarquistas nas ruas, eles esperavam ser ‘chefes’ nas suas casas – uma queixa ecoada em muitos artigos escritos em jornais e revistas durante esse período.”

O sexismo também ocorria na esfera pública, onde, por exemplo, as mulheres militantes por vezes achavam que não eram tratadas com seriedade e respeito pelos seus camaradas masculinos. As mulheres também enfrentaram problemas na sua luta por igualdade dentro do movimento sindical nos séculos XIX e XX em que a situação desigual entre homens e mulheres no emprego remunerado era uma questão constrangedora. Os homens nos sindicatos argumentavam que as mulheres baixavam os salários dos trabalhadores organizados e alguns acreditavam que a solução era excluir inteiramente as mulheres do sindicato e aumentar o salário masculino para que os homens pudessem sustentar as suas famílias. Em meados do século XIX na Grã-Bretanha um alfaiate resumiu o efeito do trabalho feminino da seguinte maneira:

“Quando comecei a trabalhar neste ramo [fabrico de coletes], havia muito poucas mulheres nele empregadas. Deram a elas alguns coletes brancos na ideia de que as mulheres os tornariam mais limpos do que os homens …Mas desde o aumento dos sistemas a vapor, amos e capatazes têm procurado por toda a parte mãos que façam o trabalho por menos que o normal.  Daí a esposa fez-se para competir com o marido, e a filha com a esposa…Se o homem não reduzir o preço do seu trabalho como a mulher, deve continuar desempregado”. [4]

A política de excluir as mulheres de certos sindicatos era frequentemente determinada pela concorrência que abatia os salários e não por ideologia sexista, embora também a ideologia tivesse um papel a desempenhar. Na indústria de tabaco nos inícios do século XX em Tampa (EUA), por exemplo, um sindicato anarco-sindicalista, La Resistência, composto maioritariamente por emigrantes cubanos, procurou organizar todos os trabalhadores em toda a cidade. Mais de um quarto da sua filiação era composta por mulheres que trituravam o tabaco. Esta organização sindicalista foi denunciada como sendo anti-masculina e anti-americana por outro sindicato, o Cigar Makers’ Industrial Union, que seguia estratégias excludentes e “com muita relutância organizava mulheres trabalhadoras numa secção separada e secundária do sindicato”. [5]

A força da libertação das mulheres tem sido o feminismo

Está geralmente bem documentado que a luta pela emancipação das mulheres nem sempre foi apoiada e que historicamente as mulheres têm-se deparado com o sexismo dentro das organizações de luta de classes. Os ganhos inquestionáveis que tem havido em liberdade para as mulheres são devidos àquelas mulheres e homens, tanto dentro como fora das organizações de classe, que enfrentaram o sexismo e lutaram por melhorias na condição da mulher. Foi o movimento feminista em toda a sua variedade (classe média, operário, socialista, anarquista…) que desbravou o caminho na libertação das mulheres e não os movimentos focados na luta de classe. Realço este ponto pois, embora hoje o movimento anarquista como um todo apoie o fim da opressão das mulheres, uma desconfiança do feminismo permanece, com anarquistas e outros socialistas por vezes distanciando-se do feminismo, porquanto este muitas vezes carece de uma análise de classe. Ainda assim, é a esse mesmo feminismo que temos de agradecer pelos ganhos bastante reais que nós mulheres tivemos.

Quão relevante é a classe quando se trata de sexismo?

Quais são as abordagens comuns ao feminismo dos anarquistas classistas hoje? No extremo da reação contra o feminismo está a perspetiva do completo reducionismo de classe: só importam as questões de classe. Este ponto de vista dogmático tende a ver o feminismo como fator de divisão [seguramente o sexismo é mais divisivo que o feminismo…?] e uma distração da luta de classes, e argumenta que qualquer sexismo que exista desaparecerá automaticamente com fim do capitalismo e das classes.

Contudo, uma abordagem anarquista mais comum é a aceitação de que o sexismo existe, não se extinguirá automaticamente com o fim do capitalismo e precisa de ser combatido no aqui e agora. Todavia, como já foi mencionado, os anarquistas muitas vezes esforçam-se por se distanciar do feminismo “mainstream” por causa da sua falta de análise de classe. Como alternativa, ressalta-se que a experiência do sexismo é diferenciada por classe e que, portanto, a opressão das mulheres é uma questão de classe. É seguramente verdade que a riqueza permite mitigar os efeitos do sexismo: é menos difícil, por exemplo, fazer um aborto se não tivermos que nos preocupar com arranjar dinheiro para uma viagem ao estrangeiro; questões relacionadas com o trabalho doméstico e cuidar de crianças tornam-se menos preocupantes quando se pode pagar a alguém para ajudar. Também temos prioridades diferentes consoante nosso contexto socio-económico.

Contudo, ao enfatizar constantemente que a experiência do sexismo é diferenciada por classes, os anarquistas podem dar a impressão de encobrir ou ignorar outra verdade: que a experiência de classe é diferenciada por sexo. O problema, a injustiça, do sexismo é que há relações desiguais entre mulheres e homens dentro da classe trabalhadora e, na verdade, em toda a sociedade. As mulheres estão sempre em desvantagem em relação aos homens da sua respetiva classe.

Em maior ou menor grau, o sexismo afeta mulheres de todas as classes; porém uma análise feminista que não enfatize a classe é alvo habitual de críticas. Mas é a classe relevante para todos os aspetos do sexismo? Como é a classe relevante para a violência sexual, por exemplo? A classe certamente não é sempre o ponto mais importante em qualquer caso. Por vezes há uma insistência em juntar uma análise de classe a todas as posições feministas, como se isso fosse necessário para dar credibilidade ao feminismo, para validá-lo como uma luta digna para anarquistas revolucionários. Mas essa postura perde de vista o ponto essencial, que é, sem dúvida, o de que somos contra o sexismo, seja qual for o seu disfarce, sejam quem forem as suas vítimas…?

Se uma pessoa é espancada até à morte num ataque racista, é necessário saber a classe da vítima para expressar indignação? Deixamos de nos preocupar com o racismo quando uma vítima é um membro da classe dominante? Da mesma forma, se alguém é discriminado no trabalho com base na raça, no sexo ou na sexualidade, quer seja um varredor de rua ou um professor universitário, não é errado em ambos os casos e pelas mesmas razões? Seguramente, a luta pela libertação das mulheres por si só vale a pena assim como, em geral, vale a pena lutar contra a opressão e a injustiça, independentemente da classe dos oprimidos.

Homens e mulheres do mundo uni-vos contra o sexismo?

Dado que uma das coisas que as mulheres têm em comum transversalmente às classes e às culturas é a sua opressão, devemos então enquanto sexo feminino pedir às mulheres (e aos homens) do mundo que se unam contra o sexismo? Ou há interesses de classe opostos que tornam essa estratégia fútil?

Conflitos de interesses podem certamente surgir entre mulheres da classe trabalhadora e mulheres ricas da classe média ou classe dominante. Por exemplo, numa conferência feminista de 1900 em França as delegadas dividiram-se na questão de um salário mínimo para empregadas domésticas, que poderia prejudicar os bolsos das que podiam contratar empregadas. Hoje, pedidos de licença-paternidade ou crèche gratuita encontrarão oposição de empresários que não querem ver cortes nos seus lucros. O feminismo nem sempre é bom para o lucro a curto prazo. Lutas por igualdade económica em relação aos homens na sociedade capitalista envolvem necessariamente lutas contínuas por concessões — essencialmente luta de classes.

Assim, interesses de classe divergentes podem por vezes colocar obstáculos à unidade feminista a um nível prático. Contudo, é muito mais importante para anarquistas enfatizar os laços com o amplo movimento feminista do que enfatizar as diferenças. Afinal, a classe dominante é uma minoria, e a larga maioria das mulheres na sociedade partilha um interesse comum em obter igualdade económica com os homens. Além disso, muitas questões feministas não são afetadas por tais conflitos de interesses de classe e dizem respeito a todas as mulheres em grau variado. Quando se trata de direitos reprodutivos, por exemplo, anarquistas na Irlanda estiveram e continuam envolvidas em grupos pró-escolha ao lado de partidos capitalistas sem que isso comprometa a sua linha política pois, quando se trata de combater o sexismo que nega à mulher o controlo sobre o seu próprio corpo, essa é a tática mais adequada. Por fim, vale a pena também notar que habitualmente a rejeição do “feminismo de classe média” vem dos mesmos anarquistas/socialistas que adotam a definição marxista de classe (dada no início deste artigo), a qual colocaria a maioria das pessoas de classe média bem nas fileiras da ampla classe trabalhadora.

Reformas e não reformismo

Existem duas abordagens que podemos tomar para o feminismo: podemos distanciar-nos de outras feministas focando-nos em criticar o feminismo reformista ou podemos apoiar totalmente a luta por reformas feministas enquanto sempre insistimos que queremos mais!! Isto é importante especialmente se quisermos que o anarquismo seja mais atrativo para as mulheres (uma sondagem recente do Irish Times mostra que o feminismo é importante para mais de 50% das mulheres irlandesas). Na visão comunista-anarquista da sociedade futura com o seu princípio orientador, a cada um de acordo com as necessidade, de cada um de acordo com as capacidades, não há nenhuma propensão institucional contra as mulheres como há no capitalismo. Assim como os benefícios para mulheres e homens, o anarquismo tem muito a oferecer às mulheres em particular, em termos de liberdade sexual, económica e pessoal que se aprofunda e oferece mais do que qualquer igualdade precária que possa ser alcançada sob o capitalismo.

* * * * *


[1] Esta descrição da classe média é emprestada de Wayne Price. Ver «Porquê a classe trabalhadora?» em anarkismo.net www.anarkismo.net

[2] Ver por exemplo os artigos em «Toward an Anthropology of Women» por Rayna R. Reiter.

[3] Citação de Hannah Mitchell tirada de Women in Movement (p. 135) por Sheila Rowbotham.

[4] citação tirada de Women and the Politics of Class (p. 24) por Johanna Brenner.

[5] ibid, p. 93

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“Nós temos de estar do lado dos de baixo”

Entrevista realizada por C. Orfiso a Maya Ayam, militante do Coletivo Quebrando Muros no Brasil que tivemos a sorte de conhecer em Portugal e com quem muito aprendemos. Achámos que deixá-la ir embora sem primeiro podermos partilhar um pouco da sua perspetiva com mais gente do nosso contexto seria um ato de egoísmo. Obrigada Maya!

Apoio Mútuo: Oi Maya, tudo bem?

Maya Ayam: Olá, tudo bem, e com você?

AM: Também. Para começar fala-nos um pouco de ti e do que fazes na vida?

MA: Bem, eu vivo em Curitiba, Paraná, e atualmente estudo Ciências Sociais, licenciatura, para dar aulas de Sociologia no ensino secundário, pela Universidade Federal do Paraná, e também tenho dado aula no PIBID que é um projeto da universidade que coloca o estudante de Ciênciais Sociais dando aulas com o professor para aprender a docência… e milito no Quebrando Muros (risos) Ah, e tenho 22 anos e sou natural do interior de São Paulo.

AM: Quando e por que é que te juntaste ao movimento estudantil no Brasil e à tendência Quebrando Muros?

MA: Eu entrei na universidade em 2015, foi quando saí da minha cidade em Itapeva no interior de SP para fazer UFPR em Cutiriba, e assim que entrei em Ciência Sociais e tive contacto com a universidade, tive contacto com o movimento estudantil e com o Coletivo Quebrando Muros e ao passo que fui conhecendo a realidade da universidade e a importância que o movimento estudantil (ME) tem para que as demandas dos estudantes sejam atendidas comecei a perceber a importância de estar militando, de estar atuando dentro do ME. Atuando dentro do ME, participando de protestos, participando inclusivé de uma ocupação à reitoria em 2015, pude ter proximidade com o Quebrando Muros e proximidade com a prática, e perceber que a importância de estar militando organizado dentro do ME para potenciar a sua militância, porque você não estará atuando somente sozinho mas coletivamente, é o que eu acredito, e vendo a atuação do CQM, sempre baseada na ação direta, na horizontalidade, de preservar que as decisões sejam tiradas em assembleia, decididas coletivamente, que todas possam fazer parte do processo, enfim essa postura mais radical e essa postura de base fez com que eu me interessasse pelo CQM  e a partir do 2º semestre de 2015 comecei o meu processo de me aproximar do CQM.

AM: Em Portugal e no resto da Europa, o modelo de organização e atuação através do agrupamento de tendência não é nada comum. Podes contar um pouco mais sobre o que é que é isto da tendência?

MA: A tendência é algo bem comum na América Latina e ela seria o intermédio entre o político e o social; ela não se coloca como organização política e ela não é o movimento social, a ideia é que para você estar dentro do coletivo você não precisa de um afinamento teórico, como se daria na organização política, o necessário é um acordo tático onde os princípios que norteiam o CQM são os princípios com que você precisa de concordar para entrar no CQM, porque nós entendemos que não existe um vácuo de poder, e o movimento estudantil é um movimento social, ainda mais no contexto da universidade brasileira onde através das cotas étnico-raciais e as cotas sociais, a partir do momento em que se implanta essas cotas o cenário das universidades brasileiras mudou: estudantes trabalhadores, estudantes pobres, estudantes não-brancos, que antes não tinham acesso à universidade, hoje estão na universidade, e as suas demandas, as suas urgências, estão latentes. Estas pessoas entraram na universidade mas precisam de se manter, e para que o movimento estudantil seja forte, seja autónomo, para atender as demandas dos de baixo, para atender as demandas dos estudantes, é necessário que estejamos dentro do movimento. É muito comum dentro do movimento estudantil que ele se torne algo burocratizado pela esquerda institucional, por partidos políticos e organizações políticas que estão no movimento estudantil para recrutar membros, para negociar quer seja com a reitoria ou com o governo ao invés de estarem de facto com os estudantes, levantando as suas demandas. Então é necessário que nós nos organizemos como coletivo, como tendência, para estar no movimento estudantil, influenciando o movimento estudantil, imprimindo o que a gente acredita, os nossos princípios, horizontalidade, ação direta, trabalho de base, etc, para que eles estejam no movimento estudantil, porque só assim o movimento pode crescer, pode se tornar combativo, e reinvidicar pela base as suas próprias demandas, então eu acredito que é de extrema necessidade que a gente se organize desta forma.

AM: Princípios como o Federalismo, Horizontalidade, que acabaste de referir, e Democracia Direta, são base para a atuação do CQM no movimento estudantil. Como é que estes se refletem na atuação numa entidade de base estudantil que na maioria das vezes se encontra burocratizada e aparelhada, como os Diretórios Académicos?

MA: Bom, nós estamos no dia a dia do movimento estudantil. No Brasil nós temos os Diretórios Académicos e os Centros Académicos, que nós consideramos que são entidades de base porque elas são organizadas por cursos. É nosso dever estar nestas instâncias de base, é a partir delas que a gente pode ir organizando no primeiro momento assembleias por curso, e depois organizando assembleias da universidade, já que cada curso tem a sua pauta e há pautas que são comuns a todos os estudantes e isso deliberamos em Assembleia Geral. Para garantir que o movimento estudantil não se torne burocrático, para que não fique nas mãos de um setor da esquerda que nada está do nosso lado, que não está preocupado com as nossas demandas, mas com as demandas das direções dos partidos, acredito que seja necessário a nossa atuação fomentando a auto-organização dos estudantes, fomentando assembleias onde todos possam participar, seja de curso, seja geral, para que as nossas demandas sejam tiradas pelas assembleias, pelos cursos. Os CAs costumam fazer assembleias dos seus cursos, por exemplo para deliberar uma greve, o primeiro passo que nós tentamos garantir é que os CAs discutam o que é a greve, discutam as pautas da greve, as pautas do seu curso, e uma vez que a assembleia delibera a greve do seu curso, esse CA vai levar a deliberação numa assembleia geral e é na AG que a gente vai discutir as reinvidicações da nossa greve geral. Uma outra questão é quando nós temos pautas e a gente sabe que se for sentar na reitoria para negociar sem uma pressão dos estudantes, sem uma pressão da base, nós não seremos ouvidos, nossas demandas não serão atendidas: é necessário que estejamos em protesto, que estejamos nos organizando em ato, que estejamos pressionando a reitoria, se for necessário com ação mais radicalizada, ocupando os nossos locais de inserção, garantido que o movimento cresça dessa forma, que os estudantes entendam que é nós por nós, que os estudantes entendam que é só nós pela base, os de baixo que conseguem se organizar para levantar nossas demandas, nossas urgências.

AM: Enquanto militante do CQM e reconhecendo a importância da presença de uma tendência no movimento estudantil, gostaríamos que nos falasses de momentos em que sentiste que a existência da organização em que militas tenha sido determinante para o desenvolvimento do movimento.

MA: Como falei antes, observei a atuação do CQM antes de ter entrado, assim que cheguei na universidade, e vejo a importância de estarmos ali trazendo essa perspetiva de trabalho de base, essa perspetiva de democracia direta, trazendo essa perspetiva libertária dentro do movimento estudantil; é fomentando dentro dos nossos locais de inserção a importância de nós lutarmos por nós mesmos que conseguimos por exemplo fomentar ocupações. No Brasil estamos passando por graves ataques constantes aos nossos direitos, e no final do ano passado, estava em votação a reforma do ensino secundarista e a PEC-55 que congela os investimentos em saúde e educação por 20 anos, medidas do governo federal onde houve resistência por todo o Brasil, principalmente dos estudantes universitários e secundaristas. A nossa atuação dentro do movimento estudantil, especificamente no Paraná, foi importante para fomentar ações mais radicalizadas, para que os estudantes se estivessem organizando nos protestos, organizando em ações para dar visibilidade à nossa pauta e para nós resistirmos. Também foi muito importante o apoio às ocupações secundaristas para garantir a resistência dos estudantes face aos ataques.

AM: Quais são as principais dificuldades do CQM na construção de um movimento estudantil autónomo e combativo que identificas?

MA: Acredito que uma das principais dificuldades é que estando dentro do movimento estudantil, existem diferentes organizações diferentes partidos políticos, e esses partidos políticos tendem a trazer a sua perspetiva, burocratizada, que não compreende as reais demandas dos estudantes, está procurando os seus próprios interesses. Às vezes a gente está num processo de greve dos estudantes e existe sempre um movimento desses setores da esquerda institucional de parar, de atravancar o processo de greve, para que saiamos com derrota dentro da mobilização dos estudantes. Porém, é possível vencer estas dificuldades, porque os estudantes pouco têm proximidade com essa esquerda que muitas das vezes não está do nosso lado. Os estudantes podem não estar organizados em coletivos, podem estar atuando de maneira independente, mas eles estão diariamente na construção do movimento estudantil, são as suas demandas, as suas necessidades, é a sua permanência na universidade que está em jogo. Os estudantes, por mais que não estejam em alguma organização ou em algum coletivo, percebem a atuação e as divergências nas atuações, e aí nós podemos ser como uma referência dentro do movimento, mostrando que é possível outro caminho, que é possível uma organização dos estudantes de maneira autónoma. Nós não precisamos de disputar uma entidade burocrática de representação estudantil, nós podemos organizarmo-nos nós mesmas pelas nossas reinvidicações. Então, eu acredito que as dificuldades existem, as grandes entidades burocráticas estão aí, há muito tempo, mas é possível vencer através da luta constante, demonstrando a nossa prática através da luta, e através da nossa organização.

AM: Maya, para além de seres estudante, também és mulher. O que é que isso quer dizer no movimento estudantil brasileiro e no CQM?

MA: Sou mulher e é de extrema necessidade que a gente debata género, e debata as diferentes opressões porque a esquerda costuma não se importar, secundariza as questões e opressões, seja de género, raça, sexualidade, étnica, enfim, não se pode secundarizar, não existe hierarquia nesse debate. E como mulher é importante que esse debate aconteça porque as nossas demandas são diferentes das demandas dos homens. Por exemplo, existem mulheres que são estudantes-mães que muitas das vezes têm de sair da universidade porque não têm auxílio da universidade, não têm um auxílio-maternidade, não têm um suporte. É necessário que pensemos na estudante como mulher, e como mãe neste caso, para que ela continue na universidade. A nossa principal questão é que uma vez que a estudante entrou na universidade ela permaneça, e então temos de ir sempre pressionando para que as nossas demandas como mulheres sejam atendidas. É importante fortalecer o movimento feminista, eu acredito no movimento feminista pelo feminismo interseccional classista, que é também um dos príncipios do CQM, entendendo que existem diferentes mulheres, não somos apenas um tipo de mulher, e todas as mulheres precisam de ser respeitadas e todas as nossas demandas precisam de ser atendidas como mulheres. É de grande importância dentro do movimento estudantil que nós façamos valer a nossa voz, porque nós somos agredidas, somos violentadas todos os dias, a nossa voz é calada, e se a gente se organizar, de maneira autónoma e de maneira combativa também as nossas demandas serão atendidas.

AM: Para finalizar, enquanto visitaste Lisboa e Coimbra, sabemos que tiveste muitas conversas em que partilhaste a tua experiência de militância e conheceste um pouco mais de algumas das lutas que se travam neste momento em Portugal e das formas como nos temos organizado. Como vês a potencialidade de desenvolver o movimento estudantil aqui?

MA: Acredito que é bem possível para agora o movimento estudantil começar a tomar uma forma, começar a ganhar força. Vendo a realidade das universidades portuguesas, que está diferente das universidades brasileiras, existem demandas de extrema urgência que é muito possível que os estudantes através da organização reinvindicando essas demandas, tomem uma força. Por exemplo, a propina, a universidade ser pública porém não gratuita, é a exclusão no acesso à universidade que o estudante se depara, o estudante que não tem capacidade de pagar essa propina, que tem aumentado, e nós não podemos aceitar, a exclusão dos estudantes nós não podemos aceitar. Vi também que em Coimbra houve uma mobilização contra a Fundação, que entendo como um processo de privatização das universidades, e acredito que a resistência precisa continuar contra a Fundação, contra o aumento da propina, contra a propina. Há pautas muito urgentes e que são evidentes, é importante que se denuncie essas medidas, que se faça espaço para debater essas medidas com os estudantes, porque muitas das vezes o estudante, não que ele aceite pela sua passividade, mas muitas das vezes aceita porque não tem a perspetiva que é possível transformar isso, que uma vez que foi aprovado não é possível voltar atrás. Porém é possível; com uma mobilização dos estudantes de maneira forte, de maneira direta, é possível que a gente transforme esse cenário. O que eu vi nas universidades portuguesas é a mesma cara, as mesmas pessoas; é o mesmo perfil de estudante. Isso não pode acontecer, isso é uma universidade elitista, isso é uma universidade excludente. As universidades brasileiras passaram por uma mudança através da política de cotas, por uma mobilização. Acredito que só a luta muda a vida, que só a mobilização pode transformar um cenário, e penso que com essas pautas é possível garantir uma mobilização.

É interessante, nós que temos uma perspetiva diferente da esquerda institucional, uma perspetiva diferente de algo de cima para baixo, de algo hierárquico, de pessoas que pensam e outras executam, é importante que estejamos no movimento de maneira organizada, de maneira coletiva também, porque quando a gente age individualmente não é tão efetivo como quando a gente age coletivamente; e nós que que somos estudantes, nós estamos na universidade, a universidade é nossa, temos de lutar pela nossa permanência e pela entrada de outros estudantes como nós. As pautas existem, o movimento estudantil em Portugal pode estar inerte, pode não estar acontecendo, porém existem demandas, existem estudantes que não estão entrando, existem estudantes que estão saindo porque não conseguem se manter nela. Então é esse momento, é essa forma, é denunciando isso, é organizando protestos, organizando debates, trazendo a perspetiva de mudar isso através da organização dos estudantes que a gente consegue começar um movimento estudantil.  Esse movimento ele quebra muros, ele é para além do movimento estudantil, está atuando contra medidas sejam do governo sejam medidas maiores. Está em apoio, solidariedade, não só com outros estudantes, mas também, com os trabalhadores, com os campesinos, com os imigrantes, com as mulheres, com as pessoas negras, com os LGBT.

Nós temos de estar do lado dos de baixo, e bem, é dessa forma, rompendo os muros, organizando o movimento estudantil e estando lado a lado dos movimentos sociais.

(E é isso.)

AM: Muito obrigada Maya, arriba las que luchan!

AM e MA: SE ESCUCHA, SE ESCUCHA, ARRIBA LAS QUE LUCHAN!

Uma proposta para os feminismos de classe

Texto de Ineso traduzido e adaptado por Liliana Silva e Clara Orfiso, originalmente publicado em Regeneración Libertaria a 30/04/16


Escrevo este texto enquanto fruto de debates e experiências coletivas em que se constatou que os feminismos de classe da atualidade não se encontram numa situação de ataque à estrutura patriarcal, como se suponha que deveriam estar.  Tal poderá ser consequência de não se planificarem estratégias e linhas de ação, por falta de propostas mais além do que a formação teórica e as concentrações por mulheres assassinadas e outros crimes de violência de género. Nesse sentido aqui vai uma das contribuições das quais nos iremos servir.

Nestes últimos anos têm-se ativado vários grupos feministas que reinvidicam um aborto livre e gratuito e neste momento estamos diante de várias demonstrações que reúnem o movimento, exemplo disso são as mobilizações do 7N*. Porém não há propostas contra a barbárie patriarcal. O conjunto de manifestações resume-se a protestar que não queremos ser mortas e que iremos lutar pelo que faz falta, apesar de não sabermos como.

Em muitos debates que tenho tido com camaradas, tem-se visto como possibilidade ter uma frente feminista forte através da qual conquistaremos os nossos interesses. Partindo de que seria praticamente composta na sua totalidade por mulheres, não acredito que seja produtivo ter uma frente feminista como eixo central da luta feminista. Acredito que a luta feminista deve estar sempre de mão dada com a luta anti-capitalista porque separá-las leva-nos a:

  • Que as mulheres das classes desfavorecidas que queiram lutar pela sua emancipação tenham que ter dupla militância: nas organizações feministas e nas da classe. Por um lado, isto leva ao debilitar de ambas as organizações já que as mulheres trabalhadoras não têm no seu conjunto as condições favoráveis para poder exercer este grau de ativismo, diminuindo assim a nossa potencialidade de construir poder popular. Por outro lado, perpetua-se na militância a dupla jornada laboral das mulheres, tendo os homens privilégio na própria estruturação da luta feminista.
  • Que os homens continuem a liderar as lutas das desfavorecidas, tanto porque as mulheres não poderiam militar nas organizações de classe como militam os homens, e porque nestas organizações não se constrói um espaço em que as mulheres estejam empoderadas e seguras.

Então, propõe-se que desde as organizações políticas libertárias nos encarreguemos de analisar o patriarcado em todos os seus espectros das nossas vidas, inserindo tanto o feminismo como o anti-capitalismo nas lutas coletivas. Ao inserir o feminismo nas organizações de trabalhadoras, todas lutaríamos enquanto classe pelos objetivos do feminismo. Além disso, as mulheres atuariam como vanguarda feminista assim como garantiriam que os espaços de luta são espaços seguros para todas: somos as principais interessadas em acabar com o patriarcado. Se não trabalharmos junto de quem exerce violência sobre nós, estes nunca deixarão de exercê-la. É absurdo separar a luta feminista da anti-capitalista quando uma carece de sentido sem a outra: não acabaremos com o capitalismo sem acabar com o patriarcado e vice-versa. Por isso temos que dotar-nos de mecanismos que façam destas lutas, as lutas das maiorias, e que vão desenvolvendo a construção de um projeto revolucionário que acabe com a estrutura patriarcal e capitalista.

Adicionar o feminismo às lutas coletivas, significa inseri-lo nas frentes de massas em que nos movimentamos. Em cada uma destas frentes o que há em comum é que todas lutaríamos como classe contra o patriarcado e que nestas somos as mulheres, a vanguarda feminista, onde atuaríamos como filtro para todo o trabalho feminista que é feito e seríamos as que garantem que os espaços em que nos movemos são seguros para todas, para assim acabar com o privilégio masculino nas lutas de classe. Neste caso as propostas são para as frentes laboral, comunitária e estudantil:

  • Para a frente laboral toca a combater a forma em que o patriarcado se apresente neste âmbito. Principalmente, o que reconhecemos na forma de desigualdade salarial e segregação do trabalho por géneros. Combater a desigualdade salarial deveria ser desde o sindicalismo do mesmo em que qualquer luta sindical, uma luta que afete todas as afiliadas por simples solidariedade. A segregação por géneros é outra forma de desigualdade salarial, onde os trabalhos de cuidados são destinados a mulheres e recebem uma remuneração muito menor do que os que podem ter trabalhos como técnicos, assim que se podem começar a combater da mesma maneira. Também se trata de buscar mecanismos que garante a participação de todos os géneros nestes trabalhos. Adicionar que no trabalho também se dão condutas de perseguição, discriminação, humilhação… às mulheres por serem mulheres. A partir da parte sindical poder-se-ia lutar para que no trabalho se garantisse a segurança das mulheres, com protocolos etc, e redes de apoio de mulheres dentro destes. Faço um ponto à parte para a prostituição. Desde o feminismo de classe poder-se-ia lutar pela legalização das cooperativas de prostitutas, onde sejam elas quem decide as suas condições de trabalho e não sejam exploradas por homens. **
  • No âmbito estudantil, as principais problemáticas que encontramos são as relações dentro da comunidade educativa, em especial com as estudantes. Aqui destacam-se os distintos assédios recebidos pelas mulheres, tanto na forma de violência estética ou sexual. Para construir empoderamento neste campo podemos começar pela criação de redes de apoio entre as estudantes afetadas, pela demonstração a quem agride de que não estamos sozinhas, e quando necessário, pela confrontação dos agressores. Nos centros educativos também destaca-se a importância de papéis patriarcais. No nosso modelo educativo o contrapoder, deve ser um dos pilares rompedores com tudo isto, desde ir acabando com “o espaço comunicativo da aula é basicamente masculino”, a inviabilização das mulheres no estúdio e a imposição de tarefas segundo o género, fazer ter educação sexual formada no consenso e nas relações sexo-afetivas. 
  • Na frente comunitária, o feminismo pode tratar de tudo o que nos afeta na vida diária, fora do meio estudantil e laboral. Aqui entra tudo o que é do âmbito privado e dos lugares de socialização. Seria a partir daqui que se combateriam reformas como a do aborto. Desde a frente comunitária deve ser básica a garantia de habitação às mulheres que sofrem de violência económica impedindo-as de se emancipar dos seus agressores, o mesmo com as famílias desfavorecidas. Deve garantir-se uma alternativa tanto a mulheres que vivem com os seus violadores como a mulheres que estão na prostituição contra a sua vontade. Para isto ajuda que tenhamos pontos de apoio para mulheres nos nossos centros sociais, enquadrados em instituições populares que garantam o já referido.
    Na frente comunitária é sem dúvida necessário potencializar redes de apoio mútuo entre mulheres, onde ajudar em situação de agressão ou outra possível situação de perigo seja um dos objetivos principais.

Enfrentar estas lutas apenas desde organizações unicamente de mulheres do meu ponto de vista não é mais do que perpetuar a atomização neoliberal. Com este modo de focar a luta feminista passamos de ter uma luta derrotista onde participa uma pequena parte das mulheres a uma luta com objetivos claros que se será cada vez mais numerosa ao conquistar as suas vitórias, na qual lutamos todas e onde nós mulheres somos a vanguarda. Por outro lado, é como integrar a frente feminista em todas as demais frentes, não propagando o isolamento a uma luta unicamente de mulheres.

Resta tudo por construir, tudo por lutar. Estas tentam ser umas das primeiras pinceladas para um feminismo combativo adaptado ao nosso contexto, que construa poder popular desde o feminismo. Com a análise das distintas realidades em que trabalhamos saberemos como lutar contra o patriarcado nas suas distintas manifestações e seremos melhores estrategas que os que lutam pela permanência da estrutura.

 

¡Qué los femicidios serán disturbios!

*Marcha realizada a 7 de Novembro contra a violência de gênero

**Esta posição não é partilhada pelxs integrantes da Apoio Mútuo. Consideramos que a prostituição nunca será isenta de exploração, sendo que ela própria é a mercantilização direta de corpos, especialmente de mulheres. Assim, não apoiamos a legalização da prostituição, até porque em países onde o mesmo aconteceu, verificou-se um aumento de tráfico de pessoas para a prostituição e não houve melhoria das condições de segurança das pessoas prostituídas. A prostituição é inerentemente violenta, classista e misógina.