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Sindicalismo Revolucionário – Neno Vasco

Este texto do anarquista e sindicalista português Neno Vasco (na foto) constituía uma brochura, que aqui transcrevemos (com uma atualização ortográfica) a partir de extratos encontrados nos jornais A Batalha Anarquista (1914) e O Ferroviário (1915). O texto trata de conceber uma organização operária capaz de enfrentar o aparato de dominação capitalista, e nesse sentido, Neno preocupa-se em discutir os problemas em torno das diferentes formas de organização operária, argumentando em defesa do modelo de “sociedades de resistência”. O sindicato, ou sociedade de resistência, em vez de servir para colmatar as lacunas do capitalismo assegurando a subsistência dos produtores através do mutualismo e cooperativismo, deveria antes ser encaminhado para a inevitabilidade da revolução social, “a expropriação da burguesia em proveito dos grupos livres e produtores, a socialização da terra e dos meios de produção” para resolver o problema social. De certa forma, este texto será um prelúdio da “Conceção Anarquista do Sindicalismo”, um guia sobre como o sindicato será capaz de se afirmar como a organização operária do futuro capaz de alcançar a sociedade comunista – a sociedade de livres e iguais.

*Baixar pdf aqui: Sindicalismo-Revolucionário-Neno-Vasco


Sumário

  1. A Organização Operária
  2. O Sindicato
  3. Constituição do Sindicato
  4. O Cofre Sindical
  5. Valor do cooperativismo
  6. O Sindicato de bases múltiplas
  7. Valor da resistência
  8. A arbitragem

A Organização Operária

Defensores de elevados idealismos combatem a «organização». É muitas vezes pura questão de palavras; pois que na prática todos quantos vivemos somos organizadores… A associação identifica-se com a organização; a união pura e simples já a supõe. Unidades que trabalham em sentidos diversos, que não se coordenam, que não se combinam, que não se organizam – que não se adaptam a um fim comum – não se somam sequer, e muito menos se associam. E quanto mais perfeita e útil é a união, mais bem organizada está.

Outras vezes repudia-se a organização permanente: a associação (ou organização que é o mesmo) deve cessar com o fim para que se constituiu.

Decerto! As organizações artificiais são inúteis e nocivas; o órgão morto, vazio de função, embaraça.

Mas o tempo não pode ser elemento de discussão; a organização durará um segundo ou um século, conforme as necessidades. Ela será permanente, se permanente for o fim; dê-se-lhe um esboço duradoiro, e ela será duradoira e eficaz.

Ora, a ação operária é na realidade permanente. A greve não passa dum episódio. Ainda que ela fosse um fim (e deve ser apenas um meio e um exercício), a ação das organizações operárias seria constituída dum modo permanente pela preparação para a luta, pela acumulação de meios de defesa, morais e materiais, pela educação associativa, pela instrução, etc.

O segredo da vitalidade da associação está precisamente em agir constantemente, em manter vivo o espírito de iniciativa, a atividade dos associados, em acender a sua curiosidade por todas as questões, grandes ou pequenas, teóricas ou práticas. A ação e o estudo são inseparáveis.

A crítica incide ainda as mais das vezes, sobre o conteúdo da organização, sobre as ideias dos associados. Aqui já não é a confusão das palavras, mas de ideias; confunde-se a organização com o seu conteúdo.

A organização será evoluída ou retardatária, consciente ou inconsciente, livre ou autoritária, emancipada ou escrava, maleável ou formalista, ativa ou morosa, leve ou pesada, segundos os indivíduos que a compõem, as suas ideias e a sua energia, as suas tendências e os seus hábitos.

A organização não é decerto uma entidade independente dos que a fazem.

Aos ativos, aos conscientes, aos emancipados, compete comunicar aos associados a sua energia, as suas conceções, o seu procedimento, pela palavra, pelo exemplo, como se faz entre o povo.

Quanto á organização, às suas vantagens na diminuição do esforço e na multiplicação dos resultados, na defesa da liberdade a valer, na emancipação das consciências, são o facto mais abundantemente provado que conhecemos em matéria social.

O Sindicato

Os sindicatos, ou sociedades de resistência são as associações operárias destinadas à defesa dos interesses dos trabalhadores contra a exploração dos capitalistas. Recebem diversos nomes segundo os países: sindicatos, ligas de resistência, uniões de ofício, associações de classe, trade-unions, etc., Corporativismo (ou unionismo, ou sindicalismo) é o conjunto de ideias e de sistemas sobre a organização operária, a sua ação e os seus métodos.

Essas disposições empregam-se por vezes em sentidos um tanto distintos, em virtude da diferença de métodos e de tendências de diversas organizações.

Especialmente nos Estados-Unidos e na Inglaterra a sociedade operária é um grupo fechado de difícil entrada. A organização operária é uma espécie de aristocracia do trabalho. As corporações de ofício agem isoladamente e a sua ação reduz-se a melhoramentos em favor dos associados, sem mesmo tender à abolição do privilégio capitalista, sendo estritamente legal, apesar da lei feita e aplicada pelos burgueses e em seu próprio favor. A «trade-union» (expressão inglesa: União de ofício) faz política parlamentar, apoiando o candidato que mais promessas lhe fizer seja qual for o partido!

Este «trade-unionismo» vai morrendo por culpa dos seus erros e defeitos.

Na Inglaterra o «trade-unionismo» vai aderindo ao socialismo ou ao sindicalismo revolucionário.

Nos Estados-Unidos já há mesmo uma forte organização (Federação dos Trabalhadores do Mundo)[1] agindo sobre o terreno da luta de classes repudiando o parlamentarismo. A sociedade operária alemã não é, a bem dizer, de resistência. A resistência é ali disfarçada, encoberta, sufocada, pelo mutualismo e pela legalidade. As derrotas têm sido majestosas e as conquistas poucas.

As organizações alemãs agrupam muita gente, reúnem enormes somas, mas… são inertes, têm medo de empregar a sua força, como aquele que comprou um guarda-chuva e o meteu debaixo do capote com pena de o molhar. Quando se mexem, são pesadas e tímidas, cruzam os braços e lutam a dinheiro…

A sua política é a política parlamentar socialista.

É um modelo que vai perdendo o crédito; até na Alemanha começa a reação.

A sociedade de resistência mais perfeita e a mais completa, embora não sem defeitos, é o «sindicato» francês, aderente à Confederação Geral do Trabalho. É puramente de resistência, facilitando a entrada de todos, procurando agrupar o maior número, mas sem por isso deixar de agir constantemente. Trata de conquistar melhoramentos (sobretudo redução de horas) fazendo assim exercício para a greve geral revolucionária e para a expropriação dos meios de produção e de transporte. Não aceita a política parlamentar, fazendo, porém, luta política (contra o Estado, contra o Governo, desde o ministro ao polícia, mas especialmente contra o militarismo), pois o poder político é defensor do capitalismo. Mas essa luta (assim como a económica) é pela ação direta, operária, e não indireta por meio dos deputados no parlamento.

Este método – que por influência da França vai sendo chamado «sindicalismo» – é seguido já pela Suíça francesa, e em parte pela Holanda, pela Espanha e pelas repúblicas sul-americanas, ganha terreno na Itália e nos Estados Unidos e começa a penetrar na Inglaterra e na própria Alemanha.

Constituição do Sindicato

O grupo, que tomou a iniciativa da constituição do sindicato, reúne-se e encarrega-se um indivíduo ou uma comissão de elaborar um projeto de estatutos, de pacto associativo, que será depois discutido em assembleia geral, após convite dirigido a todos os operários que se procura agremiar.

Esse pacto social deve ser o mais resumido possível, despido de vãos formalismos e de estorvos à ação sindical. Em todos os seus atos, o sindicato deve abolir as formalidades inúteis, simplificando tudo. Quem quer agir depressa e muito, constantemente, veste pouca roupa e foge às… camisas de força; quem empreende uma viagem longa, para caminhar ligeiro leva bagagem leve. Em França uma ativa organização de camponeses, gente prática e pouco formalista, tem uns estatutos com 9 artigos.

Em geral, o pacto social deve estatuir apenas estes pontos:

  1. – Os fins do sindicato, que a nosso ver devem ser: a) imediatos, o melhoramento das condições presentes, a propaganda associativa, a educação; b) a emancipação integral do trabalhador.
  2. – A não participação do sindicato na luta dum partido político.
  3. – A não admissão de patrões e pelo menos a exclusão da administração dos que têm compromissos com os patrões, sendo seus empregados de confiança, como os contramestres; exclusão rigorosa, igualmente de políticos profissionais. Só poderão fazer parte do sindicato os salariados enquanto exercerem o seu ofício, salvo o caso de desocupação forçada.
  4. – Uma administração reduzida à sua mais simples expressão: um secretário (ou mais, se o exigir o serviço) e um tesoureiro; quando muito alguns conselheiros e revisores de contas. Estas funções são puramente administrativas, e diretivas; trata-se dum serviço, dum trabalhão a executar e escrupulosamente cumprido. Estes funcionários não mandam, mas trabalham; não impõem ideias ou vontades próprias, mas executam resoluções tomadas.

Devem ser substituídos com frequência, não só porque estas funções são um encargo e não uma honra ou um privilégio, mas também porque contribuem para a educação dos operários.

Havendo absoluta necessidade de funcionários pagos, permanentes, devem estes receber um salário não superior ao que tinham como operários, devendo naturalmente todas as despesas de propaganda, organização e administração ficar a cargo do sindicato ou federação de sindicatos. Não havendo necessidade e podendo o serviço ser bem assegurado por voluntários, podem pagar-se os dias de trabalho perdidos por causa da associação.

A estes pontos podem juntar-se outros que variam segundo as circunstâncias: instituição de biblioteca, de escolas profissionais, de obras de propaganda, etc.

O Cofre Sindical

O sindicato e a federação sindical têm diversas despesas – para a propaganda, a solidariedade, a organização, a administração, a ação – e precisam, portanto, de dinheiro. A quota neste caso, representando um sacrifício em favor da ação operária essencial, é em geral uma prova de consciência. Mas é preciso não perder de vista que o sindicato procura recolher no seio sobretudo as boas vontades e que quotas demasiado elevadas tornam o sindicato uma corporação fechada e privilegiada, em luta com a parte mais miserável da classe.

É preciso acima de tudo não confundir a quota, menos elevada, com o entesouramento. Peça-se ao associado o maior sacrifício pecuniário possível, mas para que seja logo convertido em propaganda, educação e movimento. Pecúlio, apenas o indispensável para sustentar os primeiros passos duma ação.

Os sindicatos que têm grossos fundos fazem-se timoratos, inativos e conservadores… com medo de gastar o cobre; e assim os sócios depositam o seu dinheiro, e as vantagens, morais e materiais, não veem.

Contra os patrões, senhores de grandes reservas, de fortes meios de propaganda e de coação, a luta assenta muito mais sobre a energia, a rapidez no ataque e na solidariedade dos companheiros e da população na luta, do que nos míseros vinténs acumulados.

Há casos de derrota operária, apesar dos fortes subsídios de greve; por vezes os operários subsidiados abandonam a luta (?) num momento não desesperado!

O interesse dos patrões está mesmo em que os sindicatos entesourem; isso dá-lhes uma garantia de paz e uma possibilidade de obter legalmente firmada em qualquer texto de lei apresentado por um advogado hábil e tido em conta por um juiz amigo, uma indemnização por perdas e danos, sob pretexto de estorvos à pretendida «liberdade do trabalho», rutura de contrato, excitação à greve, etc. Há disso numerosos exemplos em vários países. Uma das condições que uma associação patronal francesa exigia para reconhecer um sindicato operário e negociar com ele era «que oferecesse responsabilidades e garantias efetivas».

Falamos aqui da caixa de resistência, a única que julgamos indispensável no sindicato, E esse dinheiro deve ser gasto, sem muita demora, na propaganda, nos locais, na agitação. Por vezes é preciso considerar certos casos especiais de solidariedade, para com um companheiro vítima da luta, por exemplo, e sustentar mesmo os primeiros momentos da greve; mas neste último caso mais vale recorrer à solidariedade pecuniária dos trabalhadores de todos, e principalmente à decisão e prontidão dos grevistas…

Valor do cooperativismo

Na cooperativa de consumo unem-se muitas pessoas para comprarem por junto os géneros de consumo, revendendo-os aos sócios. O seu intuito, raras vezes alcançado por completo, é a supressão dos intermediários. É difícil que a cooperativa tenha o poder económico de comprar na origem e em grandes quantidades, estando, portanto, sujeita ao grande comerciante. Demais nem todos os operários ou todas as categorias de operários podem facilmente recorrer à cooperativa: por exemplo, os que sofrem de frequente desocupação, os que não têm salário fixo, os que dependem, pela sua situação incerta e subordinada, do negociante que vende a crédito ou da loja administrada direta ou indiretamente pelo seu patrão industrial.

Na cooperativa de produção unem-se os trabalhadores para produzir as mercadorias e vendê-las diretamente ao público, no intuito de suprimir o ganho do patrão em proveito do produtor e do consumidor. Mas a luta, possível com o pequeno patrão, é dificílima com o grande industrial e as grandes empresas capitalistas, com os trusts, que dispõem da melhor maquinaria. Demais, em regime capitalista, está-se sujeito à sobreprodução, isto é, produção superior às possibilidades de consumir, embora não às necessidades reais, e por consequência, às crises de desocupação e miséria.

Sem contar o espírito de ganância que as cooperativas, quando triunfantes, desenvolvem, é preciso ter em vista que, sendo os capitalistas senhores da terra e dos meios de produção, têm sempre o poder de aniquilar ou reduzir a proporções mínimas as vantagens económicas das cooperativas, sobretudo se da parte dos operários falta a resistência. E esta resistência, como veremos, é muitas vezes amortecida pelo facto de colocarem os operários a sua confiança nas obras do mutualismo e cooperativismo.

Kropotkin cita o facto sucedido a uma pessoa que foi alugar casa nas vizinhanças da cooperativa: «Eu elevo o aluguer da casa, dizia com a maior naturalidade a proprietária, porque há a vantagem compensadora de lhe ficar perto a cooperativa…» Quer isto dizer que os detentores a riqueza social – terra, casas, máquinas, etc. – têm muitos meios de retirar por um modo o que por outro perdem: elevação de preços, baixa de salários, constituição de trusts, açambarcamento de mercadorias, armazenagem de produtos que podem esperar, etc. A própria organização social burguesa, no seu funcionamento normal, com as suas crises de produção e desocupação, deslocação de capitais, migrações, neutraliza até a obra de resistência do proletariado, – o que prova que é uma necessidade inevitável a revolução social, isto é, a expropriação da burguesia em proveito dos grupos livres de produtores, a socialização da terra e dos meios de produção.

O Sindicato de bases múltiplas

Qualquer que seja o valor atribuído ao mutualismo e ao cooperativismo, o ponto principal é que não venham embaraçar e sufocar a resistência. Uma função é tanto mais perfeita quanto menor é o número das funções cumulativas exercidas pelo mesmo órgão. É necessário que essas funções sejam autónomas, que se opere uma divisão de trabalho.

O cooperativismo e o mutualismo, capazes de agrupar um grande número de operários, têm ao menos a vantagem moral de desenvolver o espírito de solidariedade. Nas cooperativas as capacidades administrativas dos operários podem achar expansão, e não faltam anarquistas (como Tcherkesoff)[2] que lhes atribuem valor, mesmo em períodos de crise revolucionária, para a pronta reorganização comunista da produção.

Quanto, porém, aos melhoramentos imediatos dados por esses modos de agrupamento, eles seriam inteiramente nulos e à custa dos trabalhadores, se não fosse a organização de resistência.

O que sobretudo devemos combater é o «sindicato de bases múltiplas», onde a resistência é embrulhada e abafada por instituições de caráter mutualista e cooperativo. A resistência verdadeira, ativa, franca, tem para os revolucionários socialistas o valor essencial de colocar resolutamente o operário em frente do patrão, de aclarar a luta de classes. O organismo que a prepara e que para ela procurar coordenar as forças operárias, deve ser adequado ao seu fim, ter dele consciência e tê-lo constantemente em vista, agindo constantemente. Eis porque os que vão ao sindicato com a mira no subsídio e nas várias caixas (em regra só aparecem para receber o cobre), inconscientes do fim essencial do sindicato, sem espírito de resistência, são um peso morto sempre e por vezes uma oposição à ação de resistência. Para que a organização seja adequada ao seu fim, todo de propaganda e ação, é necessário que os seus membros estejam decididos a ele. Nos momentos de ação, quando a necessidade da resistência se evidencia, e à medida que a propaganda ilumina as consciências, os operários correm a engrossar o núcleo de voluntários, de ativos e conscientes; o número segue a qualidade.

De outro modo pode obter-se uma agremiação numerosa e duradoura – o que não quer dizer forte e ativa; mas essa organização é inadequada para a resistência.

Em suma, a resistência ao patronato é a ação essencial e sem ela qualquer obra de beneficência, mutualismo ou cooperativismo seria toda a cargo do operariado, facilitando mesmo ao patrão a imposição das suas condições e embaraçando a ação do sindicato, quando nele introduzida.

Valor da resistência

Os patrões procuram dar o menos possível em troca da maior soma possível de trabalho, mas encontram um limite extremo na necessidade, na vantagem própria, de que o operário se mantenha de pé e se reproduza. Esse limite é, porém, muito variável de facto: as condições dos diversos proletários variam grandemente do campo para a cidade, de lugar para lugar, de país para país. Certa classe operária não consentiria, a custo de uma revolta, em viver como outra faz tranquilamente. Dizemos certa classe e não certo indivíduo, pois que este é forçado ou a submeter-se porque os outros se submetem, vencendo-o nessa concorrência… às avessas, (assim, nos países de imigração, os trabalhadores vindos das regiões mais miseráveis e habituados a uma vida pior, fazem baixar as condições de trabalho, vendendo-se por preço ínfimo e obrigando os outros ao mesmo) ou a recorrer à emigração, que é, afinal, uma forma de resistência, mesmo coletiva, quando faz rarear a oferta de braços no lugar de onde se emigra.

Na lei de bronze dos salários, segundo a qual as condições operárias tendem a descer ao limite em que o salariado apenas pode vegetar e reproduzir-se, intervém como elemento a vontade, a resistência coordenada dos trabalhadores. A resignação, a passividade, o hábito da miséria faz baixar a vida a tal grau de miséria abjeta e degradante que parece mesmo desmentir a lei de bronze, não sendo então possível uma vida mesmo animal nem uma união sexual, a reprodução. Por outro lado, a resistência, tanto mais eficaz quanto mais consciente e enérgica, faz subir o nível da vida proletária a um certo grau de bem-estar. Até ao ponto em que o patrão já não teria lucro, isto é, deixaria de ser patrão, as condições operárias oscilam, proporcionalmente à resistência solidária dos salariados, se todas as outras circunstâncias que influem nessa oscilação forem postas de lado. Como atrás ficou dito, há circunstâncias próprias do sistema capitalista, que destroem rapidamente os frutos dos esforços operários.

Mas, neste caso, se o operariado se habituou a certo grau de bem-estar, sem o qual já não pode passar, se se foi exercitando na luta, se, graças aos fatos e à educação revolucionária, compreendeu as causas profundas do mal-estar, ei-lo arrastado pela mudança brusca à ação revolucionária.

O sentimento de bem-estar e o espírito de revolta são dados pela ação contínua e solidária, que prepara e produz o facto. Aqui ressalta a razão principal do nosso interesse pela organização e ação sindicalistas: o operário enfrenta o patrão, aprende a considera-lo como parasita, educa-se no antagonismo de classe; discute com os seus os interesses profissionais, adquire o hábito da solidariedade, intervém na vida social.

Graças à luta e à propaganda que essa luta facilita e fecunda, o trabalhador penetra cada vez mais profundamente na compreensão da origem do mal e prepara-se moral e materialmente para o que é a conclusão lógica do movimento sindicalista operário: a expropriação revolucionária da terra e de todos os meios de produção.

A arbitragem

Para concluir, falemos agora da arbitragem nos conflitos do trabalho com o capital.

A arbitragem supõe litigantes de força igual normalmente, supõe o consentimento das partes, a absoluta independência e imparcialidade dos árbitros, a existência de direitos primários reconhecidos de parte a parte. Ora, nenhuma destas condições se dá entre patrão e salariado; o operário não pode consentir que o seu direito à existência dependa duma arbitragem, muito suscetível de ser comprada, ou torcida ou desprezada pelos seus empregadores, não pode reconhecer o direito de o explorarem. Entre as duas forças há uma luta que a intervenção suspeita da lei do salariado. A arbitragem obrigatória, como a «lei sobre os conflitos coletivos» da Suíça, é um laço mais para manietar os trabalhadores na sua legítima e necessária defesa contra a exploração patronal. Não; há só um meio de fazer terminar a luta, de realizar a paz social, a harmonia entre o capital e o trabalho: é coloca-los nas mesmas mãos, as o produtor-consumidor, é abolir as duas classes em guerra, burguesa e proletária, e fundi-las numa só, pela posse em comum dos meios de produção. Até lá, a arbitragem é uma burla infame, que é preciso combater a todo o transe.


[1] Neno refere-se à Industrial Workers of the World (IWW).
[2] Anarquista-comunista que lutou pela autodeterminação da Geórgia. Tem como principal obra “Pages of Social History” (disponível na libcom.org) em que crítica as raízes utópicas do dito “socialismo científico”. Fundou a Cruz Vermelha Anarquista e assinou o Manifesto dos Dezasseis de Kropotkin.
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Feminismo, Classe e Anarquismo

Artigo de Deirdre Hogan, feminista anarquista irlandesa, traduzido de Anarkismo.net


A relação entre a sociedade de classes e o capitalismo

Uma característica definidora da sociedade capitalista é que ela está amplamente divida em duas classes principais: a classe capitalista (burguesia), composta por grandes proprietários de negócios, e a classe trabalhadora (proletariado), composta mais ou menos por todas as outras pessoas – a grande maioria que precisa de trabalhar por um salário. Existem, é claro, muitas áreas cinzentas dentro desta definição da sociedade de classes, e a própria classe trabalhadora não é composta por um grupo homogéneo de pessoas, já que inclui, por exemplo, trabalhadores não qualificados bem como a maioria do que chamamos de classe média, e portanto pode haver diferenças muito significativas em termos de rendimentos e oportunidades para diferentes setores desta classe trabalhadora assim amplamente definida.

“Classe média” é um termo problemático visto que, embora de uso frequente, raramente é claro a quem exatamente se refere. Habitualmente, “classe média” refere-se a trabalhadores como os profissionais liberais, a pequenos empresários e a cargos de gestão inferiores ou intermédios. Seja como for, estas camadas intermédias não são realmente uma classe independente, na medida em que não independem do processo de exploração e acumulação de capital que é o capitalismo. Elas geralmente estão nas margens de uma das duas classes fundamentais, capitalistas e trabalhadores.[1]

O importante quando entendemos a sociedade como dividida em duas classes fundamentais é perceber que a relação económica entre as ditas classes, os grandes empresários e as pessoas que para eles trabalham, é baseada na exploração, e portanto estas duas classes têm interesses materiais fundamentalmente opostos.

O capitalismo e os negócios são, por natureza, orientados para a obtenção de lucro. O trabalho feito por um funcionário no seu emprego gera riqueza. Alguma desta riqueza é dada ao funcionário no seu pacote salarial, sendo o restante retido pelo patrão, somando aos seus lucros (se o funcionário não fosse lucrativo, não estaria empregado). Deste modo, o empresário explora o funcionário e acumula capital. É do interesse do empresário maximizar os lucros e manter baixos os custos como pagamento de salários; é do interesse do funcionário maximizar o seu ordenado e as condições laborais. Este conflito de interesses, e a exploração de uma classe de pessoas por outra classe minoritária, é inerente à sociedade capitalista. Os anarquistas visam, em última instância, abolir o sistema de classes capitalista e criar uma sociedade sem classes.

A relação entre sexismo e capitalismo

O sexismo é uma fonte de injustiça que difere em alguns aspetos da exploração de classe do tipo acima abordado. A maioria das mulheres vive e trabalha com homens durante, pelo menos, boa parte das suas vidas; mantêm relações estreitas com vários homens – o pai, o irmão, o companheiro, o marido ou amigos. Mulheres e homens não têm interesses diretamente opostos; não pretendemos abolir os sexos mas sim a hierarquia de poder existente entre os sexos e criar uma sociedade onde mulheres e homens possam viver juntos livremente e como iguais.

A sociedade capitalista depende da exploração de classe. No entanto, não depende do sexismo e, em teoria, poderia acomodar em larga medida um tratamento similar para mulheres e homens. Isto é evidente se olharmos para o que a luta pela libertação das mulheres tem conseguido em muitas sociedades ao longo dos últimos, digamos, 100 anos, nos quais houve melhorias radicais na situação da mulher e nos pressupostos subjacentes sobre quais os papéis naturais e adequados às mulheres. O capitalismo, entretanto, adapotou-se às mudanças no papel e estatuto da mulher na sociedade.

Por conseguinte, o fim do sexismo não conduzirá necessariamente ao fim do capitalismo. Do mesmo modo, o sexismo também poderá permanecer após a abolição do capitalismo e das classes. O sexismo é possivelmente a forma mais antiga de opressão, e não antecede apenas o capitalismo; há evidências da existência de sexismo em formas anteriores de sociedade de classes.[2] Ao passo que as sociedades desenvolveram a natureza exata da opressão das mulheres, a forma particular que esta toma tem mudado. Sob o capitalismo a opressão das mulheres tem um caráter particular, sendo que o capital aproveitou esta opressão histórica para maximizar lucros.

Mas quão realista é o fim da opressão das mulheres no capitalismo? As mulheres enquanto sexo são oprimidas de muitas maneiras na sociedade atual – economicamente, ideologicamente, fisicamente, e assim por diante – e é provável que o prosseguimento da luta feminista leverá a novas melhorias na condição da mulher. Seja como for, e embora seja possível antever vários aspetos do sexismo esboroando-se como consequência da luta, certas características do capitalismo tornam altamente improvável a completa igualdade económica entre mulheres e homens. Isto porque o capitalismo tem por base a necessidade de maximizar lucros, e num sistema assim as mulheres estão em natural desvantagem.

Na sociedade capitalista, a capacidade de dar à luz é um encargo. A condição biológica das mulheres implica que (se tiverem filhos) elas terão de passar pelo menos algum tempo ausentes de qualquer trabalho remunerado. Essa mesma função biológica também as torna responsáveis em última instância por qualquer criança a seu cargo. Em consequência, a licença de maternidade paga, o subsídio monoparental, a licença para cuidar de crianças doentes, creche e estabelecimentos de acolhimento de crianças gratuitos, etc., serão sempre particularmente importantes para as mulheres. Por esta razão, no capitalismo as mulheres são economicamente mais vulneráveis que os homens: os ataques a conquistas como creches gratuitas, subsídio de maternidade e outros sempre afetarão desproporcionalmente mais as mulheres do que os homens. Além do mais, sem uma plena igualdade económica é difícil ver o fim das relações desiguais de poder entre homens e mulheres e a ideologia associada do sexismo. Assim, ainda que possamos admitir que o capitalismo poderia acomodar a igualdade das mulheres em relação aos homens, a realidade é que a concretização plena desta igualdade é muito improvável no capitalismo. Isto simplesmente porque existe uma desvantagem económica vinculada à biologia das mulheres, que torna a sociedade capitalista baseada no lucro inerentemente enviesada em desfavor das mulheres.

A luta pela emancipação das mulheres nos movimentos de classe trabalhadora

Um dos melhores exemplos de como a luta pela mudança pode trazer mudanças reais e duradouras na sociedade são as grandes melhorias no estatuto, nos direitos e na qualidade de vida das mulheres que a luta feminista alcançou em muitos países ao redor do mundo. Sem esta luta (a que chamarei feminismo, embora nem toda gente que luta contra a subordinação das mulheres se tivesse identificado como feminista), nós as mulheres claramente não teríamos tido os enormes ganhos que tivemos.

Historicamente, a luta pela emancipação das mulheres foi evidente dentro do anarquismo e de outros movimentos socialistas. Contudo, estes movimentos com um todo têm tido uma relação um tanto ambígua com a libertação das mulheres e com a luta feminista mais ampla.

Embora tenha sido sempre central ao anarquismo uma ênfase na abolição de todas as hierarquias de poder, o anarquismo tem as suas raízes na luta de classes, na luta pelo derrube do capitalismo, com o objetivo definido de criar uma sociedade sem classes. Como a opressão das mulheres não está tão intimamente amarrada ao capitalismo como está a luta de classes, a libertação das mulheres tem sido historicamente vista, e em grande medida cotinua a ser vista, como um objetivo secundário à criação de uma sociedade sem classes, não tão importante nem tão fundamental como a luta de classes.

Mas para quem é que o feminismo não é importante? Certamente, para muitas mulheres em movimentos socialistas era vital a ideia de que uma profunda transformação nas relações de poder entre mulheres e homens fazia parte do socialismo. Contudo, tendia a haver mais homens que mulheres nos círculos socialistas e os homens desempenhavam um papel dominante. As reivindicações das mulheres eram marginalizadas por causa da primazia da classe e também porque, se as questões que afetavam os operários também afetavam as operárias de modo semelhante, o mesmo não era verdade para as questões particulares à opressão das mulheres enquanto sexo. A igualdade social e económica das mulheres era por vezes vista como em conflito com os interesses materiais e o conforto dos homens. A igualdade das mulheres exigia profundas mudanças na divisão do trabalho tanto em casa como no emprego assim como em todo o sistema social de autoridade masculina. Alcançar a igualdade das mulheres também implicaria uma reavaliação da auto-identidade, em que a “identidade masculina” não poderia mais depender de ser vista como mais forte ou mais capaz que as mulheres.

As mulheres tendiam a fazer a conexão entre emancipação pessoal e emancipação política, na esperança de que o socialismo geraria novas mulheres e novos homens pela democratização de todos os aspetos das relações humanas. Porém elas achavam muito difícil, por exemplo, convencer os seus camaradas de que a divisão desigual do trabalho em casa era uma questão política importante. Nas palavras de Hannah Mitchell, ativa enquanto socialista e feminista por volta do início do século XX em Inglaterra, sobre o seu duplo turno de trabalho dentro e fora de casa:

“Mesmo o meu domingo de lazer tinha acabado, pois cedo descobri que muito da conversa socialista sobre liberdade era apenas conversa e estes jovens socialistas estavam a contar com jantares de domingo e enormes chás com bolos caseiros, carnes empanadas e tortas exatamente como os seus colegas reacionários.” [3]

As mulheres anarquistas em Espanha, na altura da revolução social de 1936, tiveram queixas semelhantes, achando que a igualdade entre mulheres e homens não se deu satisfatoriamente nas relações pessoais íntimas. Martha Ackelsberg no seu livro Mulheres Livres da Espanha observa que, embora a igualdade entre mulheres e homens tivesse sido adotada oficialmente pelo movimento anarquista espanhol já em 1872:

“Praticamente todas as minhas informantes lamentaram que, não importa o quão militantes eram até mesmo os mais comprometidos anarquistas nas ruas, eles esperavam ser ‘chefes’ nas suas casas – uma queixa ecoada em muitos artigos escritos em jornais e revistas durante esse período.”

O sexismo também ocorria na esfera pública, onde, por exemplo, as mulheres militantes por vezes achavam que não eram tratadas com seriedade e respeito pelos seus camaradas masculinos. As mulheres também enfrentaram problemas na sua luta por igualdade dentro do movimento sindical nos séculos XIX e XX em que a situação desigual entre homens e mulheres no emprego remunerado era uma questão constrangedora. Os homens nos sindicatos argumentavam que as mulheres baixavam os salários dos trabalhadores organizados e alguns acreditavam que a solução era excluir inteiramente as mulheres do sindicato e aumentar o salário masculino para que os homens pudessem sustentar as suas famílias. Em meados do século XIX na Grã-Bretanha um alfaiate resumiu o efeito do trabalho feminino da seguinte maneira:

“Quando comecei a trabalhar neste ramo [fabrico de coletes], havia muito poucas mulheres nele empregadas. Deram a elas alguns coletes brancos na ideia de que as mulheres os tornariam mais limpos do que os homens …Mas desde o aumento dos sistemas a vapor, amos e capatazes têm procurado por toda a parte mãos que façam o trabalho por menos que o normal.  Daí a esposa fez-se para competir com o marido, e a filha com a esposa…Se o homem não reduzir o preço do seu trabalho como a mulher, deve continuar desempregado”. [4]

A política de excluir as mulheres de certos sindicatos era frequentemente determinada pela concorrência que abatia os salários e não por ideologia sexista, embora também a ideologia tivesse um papel a desempenhar. Na indústria de tabaco nos inícios do século XX em Tampa (EUA), por exemplo, um sindicato anarco-sindicalista, La Resistência, composto maioritariamente por emigrantes cubanos, procurou organizar todos os trabalhadores em toda a cidade. Mais de um quarto da sua filiação era composta por mulheres que trituravam o tabaco. Esta organização sindicalista foi denunciada como sendo anti-masculina e anti-americana por outro sindicato, o Cigar Makers’ Industrial Union, que seguia estratégias excludentes e “com muita relutância organizava mulheres trabalhadoras numa secção separada e secundária do sindicato”. [5]

A força da libertação das mulheres tem sido o feminismo

Está geralmente bem documentado que a luta pela emancipação das mulheres nem sempre foi apoiada e que historicamente as mulheres têm-se deparado com o sexismo dentro das organizações de luta de classes. Os ganhos inquestionáveis que tem havido em liberdade para as mulheres são devidos àquelas mulheres e homens, tanto dentro como fora das organizações de classe, que enfrentaram o sexismo e lutaram por melhorias na condição da mulher. Foi o movimento feminista em toda a sua variedade (classe média, operário, socialista, anarquista…) que desbravou o caminho na libertação das mulheres e não os movimentos focados na luta de classe. Realço este ponto pois, embora hoje o movimento anarquista como um todo apoie o fim da opressão das mulheres, uma desconfiança do feminismo permanece, com anarquistas e outros socialistas por vezes distanciando-se do feminismo, porquanto este muitas vezes carece de uma análise de classe. Ainda assim, é a esse mesmo feminismo que temos de agradecer pelos ganhos bastante reais que nós mulheres tivemos.

Quão relevante é a classe quando se trata de sexismo?

Quais são as abordagens comuns ao feminismo dos anarquistas classistas hoje? No extremo da reação contra o feminismo está a perspetiva do completo reducionismo de classe: só importam as questões de classe. Este ponto de vista dogmático tende a ver o feminismo como fator de divisão [seguramente o sexismo é mais divisivo que o feminismo…?] e uma distração da luta de classes, e argumenta que qualquer sexismo que exista desaparecerá automaticamente com fim do capitalismo e das classes.

Contudo, uma abordagem anarquista mais comum é a aceitação de que o sexismo existe, não se extinguirá automaticamente com o fim do capitalismo e precisa de ser combatido no aqui e agora. Todavia, como já foi mencionado, os anarquistas muitas vezes esforçam-se por se distanciar do feminismo “mainstream” por causa da sua falta de análise de classe. Como alternativa, ressalta-se que a experiência do sexismo é diferenciada por classe e que, portanto, a opressão das mulheres é uma questão de classe. É seguramente verdade que a riqueza permite mitigar os efeitos do sexismo: é menos difícil, por exemplo, fazer um aborto se não tivermos que nos preocupar com arranjar dinheiro para uma viagem ao estrangeiro; questões relacionadas com o trabalho doméstico e cuidar de crianças tornam-se menos preocupantes quando se pode pagar a alguém para ajudar. Também temos prioridades diferentes consoante nosso contexto socio-económico.

Contudo, ao enfatizar constantemente que a experiência do sexismo é diferenciada por classes, os anarquistas podem dar a impressão de encobrir ou ignorar outra verdade: que a experiência de classe é diferenciada por sexo. O problema, a injustiça, do sexismo é que há relações desiguais entre mulheres e homens dentro da classe trabalhadora e, na verdade, em toda a sociedade. As mulheres estão sempre em desvantagem em relação aos homens da sua respetiva classe.

Em maior ou menor grau, o sexismo afeta mulheres de todas as classes; porém uma análise feminista que não enfatize a classe é alvo habitual de críticas. Mas é a classe relevante para todos os aspetos do sexismo? Como é a classe relevante para a violência sexual, por exemplo? A classe certamente não é sempre o ponto mais importante em qualquer caso. Por vezes há uma insistência em juntar uma análise de classe a todas as posições feministas, como se isso fosse necessário para dar credibilidade ao feminismo, para validá-lo como uma luta digna para anarquistas revolucionários. Mas essa postura perde de vista o ponto essencial, que é, sem dúvida, o de que somos contra o sexismo, seja qual for o seu disfarce, sejam quem forem as suas vítimas…?

Se uma pessoa é espancada até à morte num ataque racista, é necessário saber a classe da vítima para expressar indignação? Deixamos de nos preocupar com o racismo quando uma vítima é um membro da classe dominante? Da mesma forma, se alguém é discriminado no trabalho com base na raça, no sexo ou na sexualidade, quer seja um varredor de rua ou um professor universitário, não é errado em ambos os casos e pelas mesmas razões? Seguramente, a luta pela libertação das mulheres por si só vale a pena assim como, em geral, vale a pena lutar contra a opressão e a injustiça, independentemente da classe dos oprimidos.

Homens e mulheres do mundo uni-vos contra o sexismo?

Dado que uma das coisas que as mulheres têm em comum transversalmente às classes e às culturas é a sua opressão, devemos então enquanto sexo feminino pedir às mulheres (e aos homens) do mundo que se unam contra o sexismo? Ou há interesses de classe opostos que tornam essa estratégia fútil?

Conflitos de interesses podem certamente surgir entre mulheres da classe trabalhadora e mulheres ricas da classe média ou classe dominante. Por exemplo, numa conferência feminista de 1900 em França as delegadas dividiram-se na questão de um salário mínimo para empregadas domésticas, que poderia prejudicar os bolsos das que podiam contratar empregadas. Hoje, pedidos de licença-paternidade ou crèche gratuita encontrarão oposição de empresários que não querem ver cortes nos seus lucros. O feminismo nem sempre é bom para o lucro a curto prazo. Lutas por igualdade económica em relação aos homens na sociedade capitalista envolvem necessariamente lutas contínuas por concessões — essencialmente luta de classes.

Assim, interesses de classe divergentes podem por vezes colocar obstáculos à unidade feminista a um nível prático. Contudo, é muito mais importante para anarquistas enfatizar os laços com o amplo movimento feminista do que enfatizar as diferenças. Afinal, a classe dominante é uma minoria, e a larga maioria das mulheres na sociedade partilha um interesse comum em obter igualdade económica com os homens. Além disso, muitas questões feministas não são afetadas por tais conflitos de interesses de classe e dizem respeito a todas as mulheres em grau variado. Quando se trata de direitos reprodutivos, por exemplo, anarquistas na Irlanda estiveram e continuam envolvidas em grupos pró-escolha ao lado de partidos capitalistas sem que isso comprometa a sua linha política pois, quando se trata de combater o sexismo que nega à mulher o controlo sobre o seu próprio corpo, essa é a tática mais adequada. Por fim, vale a pena também notar que habitualmente a rejeição do “feminismo de classe média” vem dos mesmos anarquistas/socialistas que adotam a definição marxista de classe (dada no início deste artigo), a qual colocaria a maioria das pessoas de classe média bem nas fileiras da ampla classe trabalhadora.

Reformas e não reformismo

Existem duas abordagens que podemos tomar para o feminismo: podemos distanciar-nos de outras feministas focando-nos em criticar o feminismo reformista ou podemos apoiar totalmente a luta por reformas feministas enquanto sempre insistimos que queremos mais!! Isto é importante especialmente se quisermos que o anarquismo seja mais atrativo para as mulheres (uma sondagem recente do Irish Times mostra que o feminismo é importante para mais de 50% das mulheres irlandesas). Na visão comunista-anarquista da sociedade futura com o seu princípio orientador, a cada um de acordo com as necessidade, de cada um de acordo com as capacidades, não há nenhuma propensão institucional contra as mulheres como há no capitalismo. Assim como os benefícios para mulheres e homens, o anarquismo tem muito a oferecer às mulheres em particular, em termos de liberdade sexual, económica e pessoal que se aprofunda e oferece mais do que qualquer igualdade precária que possa ser alcançada sob o capitalismo.

* * * * *


[1] Esta descrição da classe média é emprestada de Wayne Price. Ver «Porquê a classe trabalhadora?» em anarkismo.net www.anarkismo.net

[2] Ver por exemplo os artigos em «Toward an Anthropology of Women» por Rayna R. Reiter.

[3] Citação de Hannah Mitchell tirada de Women in Movement (p. 135) por Sheila Rowbotham.

[4] citação tirada de Women and the Politics of Class (p. 24) por Johanna Brenner.

[5] ibid, p. 93

Seitas e Sectarismo – Parte I

Este texto, do marxista “heterodoxo” Scott Jay, foi originalmente publicado em libcom.org em inglês. Embora esta análise do sectarismo político se concentre em exemplos leninistas e trotskistas, de que o próprio autor tem experiência, trata-se de um fenómeno geral e não de todo desconhecido em correntes anarquistas, autonomistas ou quaisquer outras. Porque nenhum grupo ou organização radical está livre de se encontrar a braços com este terrível problema, tratam-se de reflexões úteis e necessária a todos que lutam por uma transformação radical da sociedade.

Segue-se a primeira de três partes da nossa tradução do texto. As duas restantes serão publicadas em breve.


trotchart2Seitas religiosas e seitas revolucionárias têm muito mais em comum do que geralmente gostariam de admitir. As suas ideias podem ser completamente diferentes, mas a sua obsessão por ideias produz organizações com os mesmos comportamentos.”

Parte I

O termo “sectário”, como muito do jargão da esquerda, é de uso tão comum que as pessoas normalmente nem se dão ao trabalho de refletir sobre o que ele significa.

Tecnicamente, um sectário é um membro duma seita, ou pelo menos alguém que age como tal. A maioria das pessoas pensa que uma seita é algo muito próximo de um culto, ainda que menos mau. Uma observação comum é que os membros das seitas podem agir como “idólatras” ou como zombies, o que pode ter alguma verdade, mas não nos diz muita coisa. O verdadeiro problema é, porque é que eles “agem como zombies?” O artigo anterior desta série procurou lidar com este problema, olhando para como a vida social interna das organizações leninistas leva a que as pessoas escondam as suas discordâncias por medo de shunning e outras represálias. O shunning é muito comum entre seitas religiosas e bastante conhecido por ocorrer, por exemplo, entre os Amish, um grupo que geralmente se considera ser uma seita.

A maioria das pessoas entenderão que uma seita é um pequeno agrupamento ou fação religiosa que se encontra algures entre a religião convencional e o culto. Em termos informais, uma seita aspira a ser uma religião e é menos doentia do que um culto.

Bryan Wilson, um sociólogo das seitas religiosas, descreve-as da seguinte maneira:

“Tipicamente, uma seita pode ser identificada pelas seguintes características: ela é uma associação voluntária; a filiação nelas é por provas, perante as autoridades da seita, de algum mérito pessoal reivindicado – como o conhecimento da doutrina, a afirmação de uma experiência de conversão, ou a recomendação de membros em boa posição; a exclusividade é enfatizada, e a expulsão exercida contra aqueles que infrinjam preceitos doutrinais, morais ou organizacionais; na sua anticoncepção ela é como uma eleita, um remanescente reunido, possuindo iluminação especial; a perfeição pessoal é o padrão aspiracional que se espera, sejam quais forem os termos em que isto se avalia; ela aceita, pelo menos como um ideal, o sacerdócio de todos os crentes; existe um nível alto de participação leiga; existe oportunidade para o membro expressar espontaneamente o seu compromisso; a seita é hostil, ou indiferente, à sociedade secular e ao estado…” (Wilson 1959)

É claro que destas características nem todas são necessariamente negativas, como a primeira de todas e a última de todas, por exemplo. Seja como for, olhando para esta lista é muito claro que a maioria dos grupos leninistas podem ser descritos como tendo as características sectárias segundo Wilson.

Mas o que é uma seita? Precisamos de uma melhor definição para além de uma lista de características. Costuma haver um pouco de confusão sobre o que significa ser sectário já que o termo é mais frequentemente definido por membros de seitas que, deliberada ou inconscientemente, definem o termo de molde a deixar a sua seita fora da mira da definição. Não se pode dizer simplesmente que uma seita é qualquer organização revolucionária pequena, ou que qualquer organização revolucionária pequena tenha que ser uma seita. O problema não é apenas ser pequena, pois se assim fosse nunca haveria nenhuma grande organização revolucionária. Isto porque, assim que uma organização se torna uma seita, é muito difícil abandonar o padrão sectário, já que somente aqueles dispostos a aceitar a definição do mundo apresentada pela seita irão juntar-se. Trata-se de um número deveras pequeno.

Seitas religiosas e seitas políticas

Devemos olhar primeiro para a definição de seitas religiosas, já que alguém em algum momento deve ter percebido que pequenos grupos revolucionários são semelhantes a elas. Uma fonte útil é Peter L. Berger, o qual descreve várias teorias da tipologia igreja versus seita, no seu artigo “The Sociological Study of Sectarianism.” (Berger 1954)

Ele começa por examinar a descrição de Max Weber, segundo a qual uma igreja é uma seita que se tornou “rotinizada”, observando que “Igreja e seita podem distinguir-se [na análise de Weber] pelo simples facto de que as pessoas nascem numa igreja, mas juntam-se uma seita. A seita morre com a geração que primeiro a constituiu.” Isto explica pouco sobre comportamento sectário, seja religioso ou político. Se a visão de Weber estivesse correta, seria difícil explicar o porquê das batalhas entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte serem descritas como “sectárias,” ou o que entender de uma organização como o Socialist Workers Party (UK) que tem existido sob várias formas por mais de meio século.

Berger dá-nos a sua própria definição, a qual é demasiado religiosa para os nossos propósitos, mas aponta na direção certa:

“Deve-se salientar novamente que o princípio orientador da definição deve ser o significado interno dos fenómenos religiosos em questão, e não certos acasos históricos da sua estrutura social. A seita, portanto, pode ser definida como um agrupamento religioso com base na crença de que o espírito está imediatamente presente. E a igreja, por outro lado, pode ser definida como um agrupamento religioso com base na crença de que o espírito está remoto.” (Berger 1954)

Converter do religioso para o político envolve um pouco de extrapolação, mas se substituirmos “a presença do ‘espírito’” por “a linha política correta” poderemos então ter uma ideia de como grupos de esquerda podem exibir o mesmo comportamento das seitas religiosas. Em ambos os casos, há uma verdade pura que só os devidamente ungidos podem possuir. Se isto é definidor de uma seita religiosa, certamente indica-nos a direção certa para entendermos a seita política.

Tendo em mente uma comparação dos sectarismos religioso e político, podemos olhar para a descrição da seita política de Marx e Engels no Manifesto Comunista, onde se lê que os comunistas “não estabelecem nenhuns princípios sectários seus, pelos quais formatar e moldar o movimento proletário.” (Marx e Engels 1848) Marx elaborou sobre isto na sua carta a Schweitzer em que escreve, “A seita encontra a justificação para a sua existência e o seu ‘ponto de honra’ – não no que ela tem em comum com o movimento de classe, mas no shibboleth particular que a distingue dele.” (Marx 1868)

Castoriadis colocou isto em termos ainda mais próximos da origem religiosa da palavra, concluindo com o papel nocivo que as seitas têm na luta de classes:

“Uma seita é um grupo que eleva a um valor absoluto um único lado, aspeto ou fase do movimento do qual é proveniente, faz disso a pedra-de-toque da verdade da sua doutrina (ou da verdade, ponto final), subordina tudo o mais a essa “verdade” e, para a ela permanecer “fiel”, está disposta a separar-se totalmente do mundo real e daí em diante viver num mundo só seu. A invocação do marxismo pelas seitas permite-lhes conceberem-se e apresentarem-se como algo diferente do que realmente são, nomeadamente, como o futuro partido revolucionário desse mesmo proletariado no qual nunca conseguem implantar-se.” (Castoriadis 1966)

Essa “verdade” pode ser uma análise específica da União Soviética ou simplesmente a importância fundamental da própria seita, não obstante toda a evidência empírica do contrário. Hal Draper elaborou sobre este ponto:

“Uma seita apresenta-se como a expressão do movimento socialista, embora seja uma organização de membership cuja fronteira é definida mais ou menos rigidamente pelos pontos do seu programa político e não pela sua relação com a luta social.” (Draper 1973)

Vamos insistir neste ponto pois ele é muito mal compreendido. “Sectário” muitas vezes quer dizer “alguém de quem não gosto,” ou simplesmente “alguém que não gosta de mim”. Com demasiada frequência, “sectarismo” é uma acusação que alguém faz contra quem lhe dirige críticas, como se a crítica fosse inerentemente sectária. Na verdade, essa acusação é muitas vezes a fonte do sectarismo, e não a crítica originária. Ou seja, é perfeitamente razoável, e na verdade necessário, que camaradas em luta observem e critiquem a militância uns dos outros no sentido de lidar com problemas reais, mas é a seita que não pode suportar ser criticada. Eles acusarão os outros de “sectarismo” de maneira a encobrir o seu próprio sectarismo. Eles detêm a única verdade e qualquer questionamento que venha de fora dos poucos selecionados é inaceitável. Chamar ao crítico de sectário é a melhor cortina de fumo para encobrir o verdadeiro sectarismo.

Mais uma vez, isto é perfeitamente consistente com sectarismo religioso:

“Os correlatos comportamentais do compromisso ideológico [do membro da seita] também servem para configurá-lo e mantê-lo apartado do “mundo”. . . A seita não apenas disciplina ou expulsa membros que perfilhem opiniões heréticas, ou cometam algum delito moral, como trata tais desvios como uma traição à causa, a menos que sejam seguidos de confissão de culpa e pedido de perdão.” (Wilson 1959)

Uma definição de seita é, portanto:

um grupo que se considera portador da verdade eterna, e que se define não só contra o mundo em geral, mas também contra outros semelhantes portadores da verdade que ameacem o status da seita.

Disto decorrem os comportamentos sectários, especificamente aqueles descritos por Wilson. Todavia, o problema não é simplesmente os comportamentos, já que eles são meramente um sintoma do sectarismo. Tentar melhorar estes comportamentos sem mudar os pressupostos e a estrutura da forma-seita de pouco serve, apenas a tornará em “aquele melhor tipo de seita que acredita que não é sectária”, tal como Draper descreve. (Draper 1973)

Idealismo e sectarismo

Uma descrição do sectarismo é-nos dada por Ernest Mandel, o mais proeminente intelectual trotskista europeu desde o fim da 2ª Guerra Mundial até à queda do Muro de Berlim. Num dos primeiros artigos que escreveu sobre oportunismo e sectarismo, ele fala extensamente sobre vários debates e discute “o carácter correto destes argumentos quando usados por um partido bolchevique, isto é, no quadro de uma orientação política correta e um programa de ação correto.” Ele discute a importância dos slogans apropriados e chega mesmo a discutir o seu “carácter algébrico.” O artigo de Mandel está carregado de idealismo – ele assume a importância primordial das ideias, em lugar da realidade material – e é inteiramente sectário, não por criticar oportunistas e sectários, muitos dos quais merecem a crítica, mas pelo seu fetichismo do programa correto leninista. O sectário celebra a sua perfeição contra o resto do mundo, e esta celebração mostra justamente quão próximos estão sectarismo e idealismo.

Para uma organização revolucionária, que por definição se contrapõe à sociedade em geral enquanto visa transformá-la radicalmente, abraçar o idealismo é tomar um caminho que conduz diretamente ao sectarismo. Focar em um programa ou teoria cuja defesa é uma tarefa central e é uma ferramenta para recrutar, ao invés de desenvolver uma estratégia imediata de luta defensiva e ofensiva, não tem outro rumo senão aquele que conduz à seita. Se as suas ideias estão certas ou erradas é irrelevante. É a própria obsessão com o certo e o errado das ideias que constitui a marca da seita.

Os membros das organizações leninistas aderem com base nas ideias – um conjunto muito específico de ideias, na maioria dos casos – e não com base na coragem, determinação, capacidade de liderança, ou o seu papel no movimento social. Alguns aderem por estas últimas razões, mas não a grande maioria. Isto significa que a filiação não é baseada em compromisso real com a luta de classes ou a capacidade de a levar por diante, e a liderança numa organização leninista habitualmente também não é fundamentada na luta de classes.

A experiência da luta de classes transforma as pessoas. Os leninistas entendem isto melhor do que muitos outros radicais, mas o problema é que os leninistas acreditam que esta transformação na consciência simplesmente conduzirá os transformados em direção ao leninismo. Não há razão para que tenha de ser assim. Os trabalhadores cujas ideias tenham sido transformadas pela luta não chegam à conclusão de que precisam de convencer mais gente a ser leninista, chegam sim à conclusão de que precisam de comprometer as suas vidas a uma prática organizativa que possa afrontar o capitalismo. Esta diferença escapa constantemente aos sectários.

Os leninistas sempre partiram do pressuposto de que estão isentos dessa mesma transformação na consciência. Novamente, como pode isso ser verdade para pessoas cuja relação com a luta de classes é meramente baseada nas ideias que têm sobre isso? As suas próprias teorias sobre como a luta de classe altera consciências contestam tal visão, coisa que eles poderiam ver com bons olhos se não se tivessem já autodefinido como os iluminados detentores da verdade no estilo típico da seita. E pior ainda, as estruturas de liderança estanques das organizações leninistas minimizam quaisquer desafios à liderança e escondem as discordâncias entre eles. Assim, quando os membros aprendem na luta lições diferentes das da sua liderança – e como seria possível isso não ocorrer? – as estruturas minimizam o impacto da luta de classes na liderança da organização, ao invés de permitirem que novas ideias sejam debatidas e eventualmente abraçadas. Isto leva ao conservatismo, o que é totalmente desadequado para trabalhadores revoltados e radicalizados que toda a vida ouviram pessoas “importantes” dizerem-lhes que estão errados.

Os leninistas, invariavelmente, sempre começaram as suas organizações como seitas. Os leninistas que contestam isto deviam olhar para trás e ver como foi de facto a fundação da sua organização, de que cisão resultou e porquê. Se eles fossem a perguntar inclusive aos seus mais respeitados camaradas da “velha guarda” sobre as origens das suas organizações, provavelmente receberiam um raspanete de ira sectária. Eles optaram sempre por distinguir-se radicalmente dos antigos camaradas dos quais cindiram bem como de toda a restante esquerda leninista, se não por nenhuma outra razão, pelo menos pelo facto de que o recrutamento requer explicar aos potenciais recrutas porque é que eles são tão diferentes. Isto faz sentido (para o punhado de iluminados, de qualquer maneira) quando os membros destes grupos são só uma dúzia ou algo assim. Mas depois passa uma década, eles já têm uma centena de membros e estão de súbdito em posição de formar uma organização mais saudável, menos semelhante à seita. O problema, no entanto, é que esta primeira colheita de membros foi recrutada para uma seita e os líderes mantiveram a sua posição usando-se de métodos típicos de seita. Qualquer passo dado no sentido de abandonar o modelo da seita ameaça a) alienar uma grande quantidade de membros que podem ir embora e b) ameaça a posição dos líderes, alguns dos quais podem já estar muito acostumados ao seu posto full-time ao longo dos anos.

A liderança e o conjunto dos membros ficam então presos num abraço de morte, que se estende aos próprios líderes, alguns dos quais desejam permanecer uma seita enquanto outros querem romper com ela para se tornarem um partido de massas. Deixar que estas divergências virem à tona é uma ameaça para toda a operação, já que alguns podem perder as suas posições por estarem no lado perdedor do debate “partido de massas versus seita”, ao passo que os vencedores terão a preocupação de que os esqueletos no armário sejam desencantados pelos perdedores. O ponto é, uma vez tomada a via da seita é extremamente difícil dela sair.

O que nos deixa com a questão: qual a diferença entre um culto e uma seita? Esta pergunta não tem uma resposta clara. Alguns definem essa diferença em razão de o agrupamento ser uma ramificação (seita) ou uma formação “novinha em folha” (culto). Contudo, em termos informais, a diferença é sobretudo um julgamento sobre o relativo perigo de isolamento em que os membros do grupo incorrem. Uma seita é apenas um culto que não importa se irá cometer suicídio em massa algures em breve, ou se será semelhantemente nocivo para os seus membros, os quais poderiam de outro modo abandonar o grupo para sua própria segurança se não fossem a atração e as pressões do culto. Podemos argumentar, por exemplo, que o Socialist Workers Party britânico (SWP) se moveu no sentido de virar um culto assim que começaram a encobrir e a defender um membro seu acusado de violação, visto que não há nenhuma saída para além da denúncia e total oposição ao encobrimento ou então adotar ainda mais as tendências cultuais de defender a liderança a todo o custo.

“Não estamos a dizer”, observou Maurice Brinton em finais dos anos 1970, referindo-se ao grupo Jonestown que cometeu suicídio em massa em Guyana, “que todos os grupos revolucionários (nem mesmo aqueles de que mais veementemente discordamos) são como o Templo do Povo. Mas quem pode – com total honestidade – deixar de reparar nas inquietantes semelhanças ocasionais? Quem não está a par de seitas marxistas que se parecem com o Templo – no tocante ao ambiente psicológico que os permeia?” (Brinton 1979)

“A única coisa que lhes faltava”, acrescentou, “era a dedicação ao suicídio coletivo.”

11 Novembro: glória aos Mártires de Chicago!

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Neste dia em 1887, nos EUA, 4 sindicalistas anarquistas foram enforcados. Este acontecimento está nas origens da criação do Dia do Trabalhador (1º de maio), em memória a estes mártires que deram a vida pela emancipação dos trabalhadores.

Depois de serem acusados sem provas, por um jurado escolhido a dedo, de terem atirado uma bomba numa manifestação contra a violência policial (4 de maio), 8 anarquistas foram condenados.

Entre os 8 condenados, Oscar Neebe foi o único que escapou à pena de morte, tendo recebido ao invés 15 anos de penitenciária. A data das execussões foi definida para 11 de novembro. Luis Lingg suicidou-se na sua cela no dia 10 de novembro, por não querer dar ao estado o direito de tirar a sua vida.
Michael Schwab e Samuel Fielden pediram clemência ao governador do estado de Illinois, que foi aceite. Em 1893 seriam libertados depois de ter sido provada a sua inocência e de todos os outros anarquistas condenados.
Os restantes 4, Parsons, Spies, Engel e Fischer, mantiveram-se impávidos, conscientes da sua inocência, preferindo enfrentar a morte a ter que pedinchar pela sua vida pedindo clemência por um crime que estavam certos de não ter cometido.

Estas foram as últimas palavras de um dos mártires, Adolph Fischer:
“Irá chegar a altura em que o nosso silêncio será mais poderoso do que as vozes que vocês enforcam hoje”

https://www.iww.org/branches/US/CA/lagmb/lit/haymarket.shtml
http://www.portaloaca.com/historia/historia-libertaria/5221-los-martires-de-chicago-la-tragedia-de-chicago-ricardo-mella.html

A Cultura da Violação

Texto de Polite Ire, original em inglês aqui


A cultura da violação não significa somente uma sociedade onde o acto físico da violação é evidente. A cultura da violação é uma cultura onde ser-se objectificada é uma norma social para a mulher, para que o medo da violação esteja sempre presente, e onde se aceita não ser possível conceber uma sociedade onde a violação não exista. Para uma descrição mais completa das implicações da cultura da violação, este blog serve de bom guia.

Existe um estudo em que se destacam a expectativa e aceitação da objectificação, do assédio, e portanto do potencial para a violação, estudo esse no qual uma alta percentagem de mulheres que trabalham em profissões dominadas por homens relatam terem passado por assédio sexual. Contudo, em lugar de culparem os autores dos assédios, as vítimas questionaram a sua própria sensibilidade, atribuindo o comportamento dos seus colegas a “coisas de homem” (Fine, 73-75). Expectativas binárias de género contribuem assim para uma cultura de culpabilização da victima [victim blaming], em que em vez de serem os homens a ter a responsabilidade de saberem comportar-se e respeitar as mulheres, são estas que têm a responsabilidade de superar uma suposta fragilidade na maneira como reagem. Para mulheres que trabalham em locais de trabalho dominados por homens, não conseguir aceitar uma tal cultura pode significar perderem o seu posto, e assim têm de escolher entre serem continuamente vítimas de assédio ou serem vítimas de desemprego.

A aceitação quotidiana desta cultura sugere que “o violador” não é um indivíduo estranho e incomum, mas sim alguém cujo comportamento espelha as expectactivas de dominação masculina dentro da sociedade. Efectivamente, a investigação empírica nunca conseguiu encontrar o “perfil” do violador “típico”, e em vez disso o que as evidências indicam é que qualquer ambiente no qual se espera que os homens demonstrem a sua masculinidade, isto é, o seu domínio sobre as mulheres, resulta numa sociedade onde a violação é mais predominante.

“Na nossa sociedade, a maneira de os homens demonstrarem as suas competências enquanto pessoas é serem “masculinos”.” (p.49)

A exigência social para que os homens apresentem qualidades masculinas indica um binarismo de género socialmente construído. Quando as qualidades humanas estão divididas em dois, quando os homens suprimem o “feminino” e as mulheres suprimem o “masculino”, a violação torna-se “o resultado lógico” (Herman, 52). Portanto, para superar a cultura da violação é necessário transformar a nossa sociedade numa sociedade em que ambos os sexos estejam igualmente capazes de aceder às multifacetadas e contraditórias qualidades humanas que até aqui têm estado bipartidas.

Muita investigação sociobiológica sobre a violação tem concluído contudo que se trata de um comportamento biológico ao invés de um comportamento social. Ainda assim estes estudos têm sido criticados por basearem as suas conclusões em extrapolações feitas a partir de estudos sobre animais. Um estudo feito por Thornhill et al concluiu que a violação teve uma função evolucionária, tendo servido como meio de os homens poderem reproduzir-se quando falhavam as tentativas de “ligação co-operativa” ou “galanteio manipulativo”. Embora o estudo reconheça a existência de causas mais directas da violação, por exemplo o desejo de dominar, etc., o que é apontado como causa fundamental é o instinto evolucionário para a reprodução. Como consequência, esta conclusão, tal como é, mostra-se demasiado fácil e preguiçosa quando confrontada com qualquer grau de evidência em contrário, repetindo obstinadamente que “isto é obra da evolução” enquanto outras causas não relacionadas com a reprodução continuam a apresentar-se (Fausto-Sterling, 193).

Ao aceitarem uma causa biológica da violação, estes estudos aceitam esta como uma parte imutável da nossa sociedade, o que tem consequências potencialmente perigosas quando se pensa em como devemos lidar com a violação, tanto em termos de punição dos violadores como em relação à prevenção – o ónus fica na vítima para que evite ser violada, ao invés de ficar nos agressores para que não cometam a violação. A responsabilidade cai assim sobre a vítima, e disto não faltarão exemplos bastante familiares. Diz-se às mulheres como fazer para não serem violadas, mudando a sua conduta, quer isto signifique não sairem sozinhas ou não beberem muito; diz-se-lhes para deixarem mais luzes acesas quando estão sozinhas em casa, para conduzirem com as janelas e portas do carro trancadas. Para evitar ser vítima de violação, uma mulher tem de viver como se todos os homens que encontra fossem potenciais violadores. A mensagem é tal que o comportamento dos violadores é eficazmente ignorado. Esta cultura de culpabilização da vítima esteve evidente na campanha anti-violação de 2008-2009 feita pela polícia de South Wales, uma campanha que incluía um cartaz dirigido às mulheres no qual se lia “Don’t be a Victim”.

Este cartaz, como aliás todas as recomendações dadas às mulheres que aqui descrevemos, não só colocam a responsabilidade da violação em cima da vítima, como também ignoram as estatísticas cruciais que mostram claramente que a vasta maioria das violações são perpetradas por homens conhecidos da vítima (frequentemente namorados ou maridos) e assim tais “conselhos” dados às mulheres são por um lado irrelevantes e por outro bastante perniciosos, porquanto geram a crença de que bastaria às mulheres serem “mais cuidadosas” e assim as violações seriam evitadas.

A teoria da causa biológica da violação é uma conclusão conveniente para aqueles que não querem a mudança social. É uma teoria que autoriza os homens a continuarem a sua dominação sobre as mulheres e permite que as normas patriarcais permaneçam incontestadas, já que a violação é considerada um comportamento evolucionário inato. Os indícios porém são fracos, sendo que o contra-argumento, de que a socialização de papéis de género cria normas de domínio masculino que são aprendidas, é muito mais convincente. Portanto a cultura da violação pode sim ser combatida, mas isso deve ser feito a nível sistémico; se quisermos realmente ver o fim da violação, não poderemos deixar o patriarcado perdurar. A cultura da violação prospera na nossa sociedade por causa do entrincheiramento de papéis binários de género. E isto também cria uma situação paradoxal em que homens que sejam delicados, atenciosos e amorosos podem declarar com a melhor das intenções que os homens devem proteger as mulheres nas suas vidas, uma intenção extraída das mesmas normas de género que permitem que os homens sejam uma ameaça. Nas palavras de Mary Edwards Walker:

“Vocês não são nossos protectores… se o fossem, de quem haveríamos nós de ser protegidas?”

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Fontes
Cordelia Fine, Delusions of Gender
Anne Fausto-Sterling, Myths of Gender
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