Este texto, do marxista “heterodoxo” Scott Jay, foi originalmente publicado em libcom.org em inglês. Embora esta análise do sectarismo político se concentre em exemplos leninistas e trotskistas, de que o próprio autor tem experiência, trata-se de um fenómeno geral e não de todo desconhecido em correntes anarquistas, autonomistas ou quaisquer outras. Porque nenhum grupo ou organização radical está livre de se encontrar a braços com este terrível problema, tratam-se de reflexões úteis e necessária a todos que lutam por uma transformação radical da sociedade.
Segue-se a primeira de três partes da nossa tradução do texto. As duas restantes serão publicadas em breve.
“Seitas religiosas e seitas revolucionárias têm muito mais em comum do que geralmente gostariam de admitir. As suas ideias podem ser completamente diferentes, mas a sua obsessão por ideias produz organizações com os mesmos comportamentos.”
Parte I
O termo “sectário”, como muito do jargão da esquerda, é de uso tão comum que as pessoas normalmente nem se dão ao trabalho de refletir sobre o que ele significa.
Tecnicamente, um sectário é um membro duma seita, ou pelo menos alguém que age como tal. A maioria das pessoas pensa que uma seita é algo muito próximo de um culto, ainda que menos mau. Uma observação comum é que os membros das seitas podem agir como “idólatras” ou como zombies, o que pode ter alguma verdade, mas não nos diz muita coisa. O verdadeiro problema é, porque é que eles “agem como zombies?” O artigo anterior desta série procurou lidar com este problema, olhando para como a vida social interna das organizações leninistas leva a que as pessoas escondam as suas discordâncias por medo de shunning e outras represálias. O shunning é muito comum entre seitas religiosas e bastante conhecido por ocorrer, por exemplo, entre os Amish, um grupo que geralmente se considera ser uma seita.
A maioria das pessoas entenderão que uma seita é um pequeno agrupamento ou fação religiosa que se encontra algures entre a religião convencional e o culto. Em termos informais, uma seita aspira a ser uma religião e é menos doentia do que um culto.
Bryan Wilson, um sociólogo das seitas religiosas, descreve-as da seguinte maneira:
“Tipicamente, uma seita pode ser identificada pelas seguintes características: ela é uma associação voluntária; a filiação nelas é por provas, perante as autoridades da seita, de algum mérito pessoal reivindicado – como o conhecimento da doutrina, a afirmação de uma experiência de conversão, ou a recomendação de membros em boa posição; a exclusividade é enfatizada, e a expulsão exercida contra aqueles que infrinjam preceitos doutrinais, morais ou organizacionais; na sua anticoncepção ela é como uma eleita, um remanescente reunido, possuindo iluminação especial; a perfeição pessoal é o padrão aspiracional que se espera, sejam quais forem os termos em que isto se avalia; ela aceita, pelo menos como um ideal, o sacerdócio de todos os crentes; existe um nível alto de participação leiga; existe oportunidade para o membro expressar espontaneamente o seu compromisso; a seita é hostil, ou indiferente, à sociedade secular e ao estado…” (Wilson 1959)
É claro que destas características nem todas são necessariamente negativas, como a primeira de todas e a última de todas, por exemplo. Seja como for, olhando para esta lista é muito claro que a maioria dos grupos leninistas podem ser descritos como tendo as características sectárias segundo Wilson.
Mas o que é uma seita? Precisamos de uma melhor definição para além de uma lista de características. Costuma haver um pouco de confusão sobre o que significa ser sectário já que o termo é mais frequentemente definido por membros de seitas que, deliberada ou inconscientemente, definem o termo de molde a deixar a sua seita fora da mira da definição. Não se pode dizer simplesmente que uma seita é qualquer organização revolucionária pequena, ou que qualquer organização revolucionária pequena tenha que ser uma seita. O problema não é apenas ser pequena, pois se assim fosse nunca haveria nenhuma grande organização revolucionária. Isto porque, assim que uma organização se torna uma seita, é muito difícil abandonar o padrão sectário, já que somente aqueles dispostos a aceitar a definição do mundo apresentada pela seita irão juntar-se. Trata-se de um número deveras pequeno.
Seitas religiosas e seitas políticas
Devemos olhar primeiro para a definição de seitas religiosas, já que alguém em algum momento deve ter percebido que pequenos grupos revolucionários são semelhantes a elas. Uma fonte útil é Peter L. Berger, o qual descreve várias teorias da tipologia igreja versus seita, no seu artigo “The Sociological Study of Sectarianism.” (Berger 1954)
Ele começa por examinar a descrição de Max Weber, segundo a qual uma igreja é uma seita que se tornou “rotinizada”, observando que “Igreja e seita podem distinguir-se [na análise de Weber] pelo simples facto de que as pessoas nascem numa igreja, mas juntam-se uma seita. A seita morre com a geração que primeiro a constituiu.” Isto explica pouco sobre comportamento sectário, seja religioso ou político. Se a visão de Weber estivesse correta, seria difícil explicar o porquê das batalhas entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte serem descritas como “sectárias,” ou o que entender de uma organização como o Socialist Workers Party (UK) que tem existido sob várias formas por mais de meio século.
Berger dá-nos a sua própria definição, a qual é demasiado religiosa para os nossos propósitos, mas aponta na direção certa:
“Deve-se salientar novamente que o princípio orientador da definição deve ser o significado interno dos fenómenos religiosos em questão, e não certos acasos históricos da sua estrutura social. A seita, portanto, pode ser definida como um agrupamento religioso com base na crença de que o espírito está imediatamente presente. E a igreja, por outro lado, pode ser definida como um agrupamento religioso com base na crença de que o espírito está remoto.” (Berger 1954)
Converter do religioso para o político envolve um pouco de extrapolação, mas se substituirmos “a presença do ‘espírito’” por “a linha política correta” poderemos então ter uma ideia de como grupos de esquerda podem exibir o mesmo comportamento das seitas religiosas. Em ambos os casos, há uma verdade pura que só os devidamente ungidos podem possuir. Se isto é definidor de uma seita religiosa, certamente indica-nos a direção certa para entendermos a seita política.
Tendo em mente uma comparação dos sectarismos religioso e político, podemos olhar para a descrição da seita política de Marx e Engels no Manifesto Comunista, onde se lê que os comunistas “não estabelecem nenhuns princípios sectários seus, pelos quais formatar e moldar o movimento proletário.” (Marx e Engels 1848) Marx elaborou sobre isto na sua carta a Schweitzer em que escreve, “A seita encontra a justificação para a sua existência e o seu ‘ponto de honra’ – não no que ela tem em comum com o movimento de classe, mas no shibboleth particular que a distingue dele.” (Marx 1868)
Castoriadis colocou isto em termos ainda mais próximos da origem religiosa da palavra, concluindo com o papel nocivo que as seitas têm na luta de classes:
“Uma seita é um grupo que eleva a um valor absoluto um único lado, aspeto ou fase do movimento do qual é proveniente, faz disso a pedra-de-toque da verdade da sua doutrina (ou da verdade, ponto final), subordina tudo o mais a essa “verdade” e, para a ela permanecer “fiel”, está disposta a separar-se totalmente do mundo real e daí em diante viver num mundo só seu. A invocação do marxismo pelas seitas permite-lhes conceberem-se e apresentarem-se como algo diferente do que realmente são, nomeadamente, como o futuro partido revolucionário desse mesmo proletariado no qual nunca conseguem implantar-se.” (Castoriadis 1966)
Essa “verdade” pode ser uma análise específica da União Soviética ou simplesmente a importância fundamental da própria seita, não obstante toda a evidência empírica do contrário. Hal Draper elaborou sobre este ponto:
“Uma seita apresenta-se como a expressão do movimento socialista, embora seja uma organização de membership cuja fronteira é definida mais ou menos rigidamente pelos pontos do seu programa político e não pela sua relação com a luta social.” (Draper 1973)
Vamos insistir neste ponto pois ele é muito mal compreendido. “Sectário” muitas vezes quer dizer “alguém de quem não gosto,” ou simplesmente “alguém que não gosta de mim”. Com demasiada frequência, “sectarismo” é uma acusação que alguém faz contra quem lhe dirige críticas, como se a crítica fosse inerentemente sectária. Na verdade, essa acusação é muitas vezes a fonte do sectarismo, e não a crítica originária. Ou seja, é perfeitamente razoável, e na verdade necessário, que camaradas em luta observem e critiquem a militância uns dos outros no sentido de lidar com problemas reais, mas é a seita que não pode suportar ser criticada. Eles acusarão os outros de “sectarismo” de maneira a encobrir o seu próprio sectarismo. Eles detêm a única verdade e qualquer questionamento que venha de fora dos poucos selecionados é inaceitável. Chamar ao crítico de sectário é a melhor cortina de fumo para encobrir o verdadeiro sectarismo.
Mais uma vez, isto é perfeitamente consistente com sectarismo religioso:
“Os correlatos comportamentais do compromisso ideológico [do membro da seita] também servem para configurá-lo e mantê-lo apartado do “mundo”. . . A seita não apenas disciplina ou expulsa membros que perfilhem opiniões heréticas, ou cometam algum delito moral, como trata tais desvios como uma traição à causa, a menos que sejam seguidos de confissão de culpa e pedido de perdão.” (Wilson 1959)
Uma definição de seita é, portanto:
um grupo que se considera portador da verdade eterna, e que se define não só contra o mundo em geral, mas também contra outros semelhantes portadores da verdade que ameacem o status da seita.
Disto decorrem os comportamentos sectários, especificamente aqueles descritos por Wilson. Todavia, o problema não é simplesmente os comportamentos, já que eles são meramente um sintoma do sectarismo. Tentar melhorar estes comportamentos sem mudar os pressupostos e a estrutura da forma-seita de pouco serve, apenas a tornará em “aquele melhor tipo de seita que acredita que não é sectária”, tal como Draper descreve. (Draper 1973)
Idealismo e sectarismo
Uma descrição do sectarismo é-nos dada por Ernest Mandel, o mais proeminente intelectual trotskista europeu desde o fim da 2ª Guerra Mundial até à queda do Muro de Berlim. Num dos primeiros artigos que escreveu sobre oportunismo e sectarismo, ele fala extensamente sobre vários debates e discute “o carácter correto destes argumentos quando usados por um partido bolchevique, isto é, no quadro de uma orientação política correta e um programa de ação correto.” Ele discute a importância dos slogans apropriados e chega mesmo a discutir o seu “carácter algébrico.” O artigo de Mandel está carregado de idealismo – ele assume a importância primordial das ideias, em lugar da realidade material – e é inteiramente sectário, não por criticar oportunistas e sectários, muitos dos quais merecem a crítica, mas pelo seu fetichismo do programa correto leninista. O sectário celebra a sua perfeição contra o resto do mundo, e esta celebração mostra justamente quão próximos estão sectarismo e idealismo.
Para uma organização revolucionária, que por definição se contrapõe à sociedade em geral enquanto visa transformá-la radicalmente, abraçar o idealismo é tomar um caminho que conduz diretamente ao sectarismo. Focar em um programa ou teoria cuja defesa é uma tarefa central e é uma ferramenta para recrutar, ao invés de desenvolver uma estratégia imediata de luta defensiva e ofensiva, não tem outro rumo senão aquele que conduz à seita. Se as suas ideias estão certas ou erradas é irrelevante. É a própria obsessão com o certo e o errado das ideias que constitui a marca da seita.
Os membros das organizações leninistas aderem com base nas ideias – um conjunto muito específico de ideias, na maioria dos casos – e não com base na coragem, determinação, capacidade de liderança, ou o seu papel no movimento social. Alguns aderem por estas últimas razões, mas não a grande maioria. Isto significa que a filiação não é baseada em compromisso real com a luta de classes ou a capacidade de a levar por diante, e a liderança numa organização leninista habitualmente também não é fundamentada na luta de classes.
A experiência da luta de classes transforma as pessoas. Os leninistas entendem isto melhor do que muitos outros radicais, mas o problema é que os leninistas acreditam que esta transformação na consciência simplesmente conduzirá os transformados em direção ao leninismo. Não há razão para que tenha de ser assim. Os trabalhadores cujas ideias tenham sido transformadas pela luta não chegam à conclusão de que precisam de convencer mais gente a ser leninista, chegam sim à conclusão de que precisam de comprometer as suas vidas a uma prática organizativa que possa afrontar o capitalismo. Esta diferença escapa constantemente aos sectários.
Os leninistas sempre partiram do pressuposto de que estão isentos dessa mesma transformação na consciência. Novamente, como pode isso ser verdade para pessoas cuja relação com a luta de classes é meramente baseada nas ideias que têm sobre isso? As suas próprias teorias sobre como a luta de classe altera consciências contestam tal visão, coisa que eles poderiam ver com bons olhos se não se tivessem já autodefinido como os iluminados detentores da verdade no estilo típico da seita. E pior ainda, as estruturas de liderança estanques das organizações leninistas minimizam quaisquer desafios à liderança e escondem as discordâncias entre eles. Assim, quando os membros aprendem na luta lições diferentes das da sua liderança – e como seria possível isso não ocorrer? – as estruturas minimizam o impacto da luta de classes na liderança da organização, ao invés de permitirem que novas ideias sejam debatidas e eventualmente abraçadas. Isto leva ao conservatismo, o que é totalmente desadequado para trabalhadores revoltados e radicalizados que toda a vida ouviram pessoas “importantes” dizerem-lhes que estão errados.
Os leninistas, invariavelmente, sempre começaram as suas organizações como seitas. Os leninistas que contestam isto deviam olhar para trás e ver como foi de facto a fundação da sua organização, de que cisão resultou e porquê. Se eles fossem a perguntar inclusive aos seus mais respeitados camaradas da “velha guarda” sobre as origens das suas organizações, provavelmente receberiam um raspanete de ira sectária. Eles optaram sempre por distinguir-se radicalmente dos antigos camaradas dos quais cindiram bem como de toda a restante esquerda leninista, se não por nenhuma outra razão, pelo menos pelo facto de que o recrutamento requer explicar aos potenciais recrutas porque é que eles são tão diferentes. Isto faz sentido (para o punhado de iluminados, de qualquer maneira) quando os membros destes grupos são só uma dúzia ou algo assim. Mas depois passa uma década, eles já têm uma centena de membros e estão de súbdito em posição de formar uma organização mais saudável, menos semelhante à seita. O problema, no entanto, é que esta primeira colheita de membros foi recrutada para uma seita e os líderes mantiveram a sua posição usando-se de métodos típicos de seita. Qualquer passo dado no sentido de abandonar o modelo da seita ameaça a) alienar uma grande quantidade de membros que podem ir embora e b) ameaça a posição dos líderes, alguns dos quais podem já estar muito acostumados ao seu posto full-time ao longo dos anos.
A liderança e o conjunto dos membros ficam então presos num abraço de morte, que se estende aos próprios líderes, alguns dos quais desejam permanecer uma seita enquanto outros querem romper com ela para se tornarem um partido de massas. Deixar que estas divergências virem à tona é uma ameaça para toda a operação, já que alguns podem perder as suas posições por estarem no lado perdedor do debate “partido de massas versus seita”, ao passo que os vencedores terão a preocupação de que os esqueletos no armário sejam desencantados pelos perdedores. O ponto é, uma vez tomada a via da seita é extremamente difícil dela sair.
O que nos deixa com a questão: qual a diferença entre um culto e uma seita? Esta pergunta não tem uma resposta clara. Alguns definem essa diferença em razão de o agrupamento ser uma ramificação (seita) ou uma formação “novinha em folha” (culto). Contudo, em termos informais, a diferença é sobretudo um julgamento sobre o relativo perigo de isolamento em que os membros do grupo incorrem. Uma seita é apenas um culto que não importa se irá cometer suicídio em massa algures em breve, ou se será semelhantemente nocivo para os seus membros, os quais poderiam de outro modo abandonar o grupo para sua própria segurança se não fossem a atração e as pressões do culto. Podemos argumentar, por exemplo, que o Socialist Workers Party britânico (SWP) se moveu no sentido de virar um culto assim que começaram a encobrir e a defender um membro seu acusado de violação, visto que não há nenhuma saída para além da denúncia e total oposição ao encobrimento ou então adotar ainda mais as tendências cultuais de defender a liderança a todo o custo.
“Não estamos a dizer”, observou Maurice Brinton em finais dos anos 1970, referindo-se ao grupo Jonestown que cometeu suicídio em massa em Guyana, “que todos os grupos revolucionários (nem mesmo aqueles de que mais veementemente discordamos) são como o Templo do Povo. Mas quem pode – com total honestidade – deixar de reparar nas inquietantes semelhanças ocasionais? Quem não está a par de seitas marxistas que se parecem com o Templo – no tocante ao ambiente psicológico que os permeia?” (Brinton 1979)
“A única coisa que lhes faltava”, acrescentou, “era a dedicação ao suicídio coletivo.”