A importância da crítica no desenvolvimento do movimento revolucionário – IV, V, VI

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IV.

Estes problemas a que faço referência, não são, para ninguém, um assunto novo. Há 85 anos já eram assinalados incisivamente por Camillo Berneri num artigo cujo tom, a qualquer um que leve já um bom tempo de militância no movimento anarquista, lhe soará tristemente atual e familiar:

(…) Somos imaturos. Tal é demonstrado pela discussão na União Anarquista fazendo subtis as palavras partido, movimento, sem entender que a questão não é de forma mas de substância, e que o que nos falta não é a exterioridade de partido, mas a consciência de partido.

O que quero dizer por consciência de partido?

Entendo algo mais que o fermento apaixonado de uma ideia, que a genérica exaltação de ideais. Entendo o conteúdo específico de um programa partidário. Estamos desprovidos de consciência política no sentido que não temos consciência dos problemas atuais e continuamos a defender soluções adquiridas pela nossa leitura de propaganda. Somos utópicos e basta. Que haja editores nossos que sigam reeditando os escritos dos maestros sem adicionar nunca uma nota crítica demonstrativa que a nossa cultura e a nossa propaganda estão em mãos de gente que tenta manter de pé o próprio caos em vez de empurrar o movimento a sair do já pensado para esforçar-se na crítica, no que está por pensar. Que haja polémicos que tentam engarrafar o adversário em vez de buscar a verdade, demonstra que entre nós há maçons, no sentido intelectual. Andamos a engarrafar para quem o artigo é um alívio ou uma vaidade e nós temos um conjunto de elementos que entorpecem o trabalho de renovação iniciado por um punhado de independentes que prometem.

O anarquismo deve ser amplo nas suas conceções, audaz, insaciável. Se quer viver e cumprir a sua missão de vanguarda deve diferenciar-se e conservar no alto a sua bandeira embora isto possa isolar-se ao restringido círculo dos seus. No entanto, esta especificidade do seu carácter e sua missão não exclui uma maior incorporação da sua ação nas fraturas da sociedade que morre e não nas construções a priori dos arquitetos do futuro. Tal como nas investigações científicas a hipótese pode iluminar o caminho do inquérito e quando é falsa a luz apaga-se, o anarquismo deve conservar aquele conjunto de princípios gerais que constituem a base do seu pensamento e o alimento passional da sua ação, pelo que deve saber confrontar o mecanismo complicado da sociedade atual sem óculos doutrinais e sem “apegos” excessivos à integridade da sua fé (…)

Haverá chegado a hora de acabar com os fármacos das fórmulas complicadas que não veem mais além dos seus jarros cheios de sumo;  haverá chegado a hora de acabar com os charlatães que embriagam o público com belas frases de elevada sonoridade; haverá chegado a hora de acabar com os simplórios que têm três ou quatro ideias enterradas na cabeça e exercem  como labaredas de fogo sagrado do ideal distribuindo excomunhões (…)

Quem tem um grão de inteligência e de boa vontade que se esforce com o seu próprio pensamento, que trate de ler na realidade algo mais do que o que o que lê nos livros e periódicos. Estudar os problemas de hoje quer dizer erradicar as ideias não pensadas, quer dizer ampliar a esfera da própria influência como propagandista, quer dizer fazer dar um passo adiante, mesmo um bom salto em comprimento, no nosso movimento.

É preciso buscar as soluções enfrentando-se os problemas. É preciso que adotemos novos hábitos mentais. Tal e qual como o naturalismo superou a escolástica medieval lendo o grande livro da natureza em vez dos textos aristotélicos, o anarquismo superará ao pedante socialismo científico, ao comunismo doutrinário fechado a priori nas suas caixas e a todas as demais ideologias cristalizadas.

Eu entendo por anarquismo crítico um anarquismo que, sem ser céptico, não se contenta com as verdades adquiridas, com as formas simplistas, um anarquista idealista e ao mesmo tempo realista; um anarquismo, em definitivo, que insira verdades novas no tronco das suas verdades fundamentais, sabendo podar os seus ramos velhos.

Não é um trabalho de demolição fácil, o niilismo hipercrítico, mas uma renovação que enriqueça o património original, adicionando forças e novas belezas. Este trabalho temos de fazê-lo agora, porque amanhã deveremos retomar a luta, que não encaixa bem com o pensamento, especialmente para nós que nunca nos podemos retirar dos campos quando a batalha se agrava.

Camillo Berneri

(Pagine Libertarie, Milão, 20 de Novembro de 1922)

As palavras de Berneri ferem-nos pela sua acuidade, mas acima de tudo, pela sua dolorosa atualidade. Ainda premeia, na discussão, o ânimo de derrotar o adversário mais que o de avançar e aprender. Até mesmo o espírito de seita se sobrepõe ao espírito de partido. Isto faz com que, à menor diferença os grupos se dividam. Não é que sejamos a favor da unidade a todo o custo, a unidade só tem sentido quando há práticas e ideias fundamentais que são convergentes (não idênticas, já que as diferenças são fundamentais para o desenrolar de uma linha política). Pelo que somos adversários amargos do sectarismo e da divisão por ninharias.

V.

O artigo citado de Berneri não é apenas importantíssimo pela crítica do movimento anterior, mas também para colocar no lugar correto a importância do desenvolvimento do pensamento crítico no nosso movimento. Creio até que o nosso movimento não consegue entender a importância do desenvolvimento da crítica e da discussão no seu seio.

Há uma relação direta entre o nível de discussão num movimento político e o seu dinamismo. Só um movimento dinâmico toma a iniciativa política e sabe incidir na realidade. Este fator, o dinamismo, deixa bastante a desejar nos círculos anarquistas. Estamos demasiado acostumados a tratar a divergência de opiniões de duas maneiras aparentemente opostas: ou nos insultamos, tratando quem pensa de maneira diferente como não sendo anarquistas verdadeiros, ou ignoramos as diferenças dizendo que ao final das contas no anarquismo vale tudo (até a ideia mais disparatada). O resultado destes dois mecanismos para enfrentar a dissidência, no entanto, é só um, deixa de haver discussão. Ou nos fechamos em capelas diferentes, ou armamos um só grande circo onde todos coexistem porém onde ninguém toca nos temas “quentes” para não ferir “susceptibilidades”.

Embora superficialmente pareçam extremos diametralmente opostos, no “vale tudo” o anarquismo e o sectarismo dogmático são idênticos no sentido de que ambos frustram a discussão e o avanço das ideias.

VI.

Creio que, sem saber discutir entre nós, menos saberemos discutir então com os outros setores do mundo popular e como resultado, mudamos a luta política (o intercâmbio e o questionamento de ideias e práticas) por uma incansável e insofrível pregação entre os convencidos. Resulta bastante decisivamente em que a grande maioria das publicações de “divulgação” anarquista pareçam dirigidas a outros anarquistas mais que a quem deveriam ser divulgadas as nossas ideias: a essa ampla massa de pessoas que não pensam nem atuam anarquicamente.

De igual maneira que entre nós as diferenças de opinião ou de prática são sinónimo de anátema, para o resto do movimento revolucionário ou da esquerda, ou até mesmo do povo, mostramos o mesmo impasse. “Reformistas”, “Fascistas vermelhos”, “Autoritários” são termos abusados que significam pouco ou nada a esta altura, precisamente, por estarem tão prostituídos. Termos que, em vez de ajudarem a esclarecer as divergências e ter pontes na discussão, isolam-nos, sem ajudar-nos nem a persuadir nem sequer a esclarecer os pontos reais da discussão. Todos os problemas de métodos e concepções com o resto da esquerda são reduzidos à fórmula simples “vocês querem o poder e nós não”. Sempre pensei no absurdo deste hábito: qualquer um que realmente esteja cego pela obsessão de ter poder faria melhor em aliar-se aos partidos do governo ou da burguesia, em vez de militar num partido comunista ou de inspiração socialista, o que sem dúvida pode trazer mais problemas que benefícios materiais no imediato. Outra coisa é o que sucede quando estes partidos chegam a ter algo de poder nas suas mãos, ou quando falham no desenvolvimento de uma burocracia com algumas parcelas dentro de algum movimento influente. Por isso, este é um problema mais de métodos do que de intenções originalmente sinistras.

Isto não exclui que a esquerda, como em qualquer outra parte, não tenha gente desonesta, gente oportunista, gente de espírito pequeno e incapazes de entender a realidade além das suas estreitas palas partisanas, ou pior ainda, gente que anteponha os interesses da sua seita aos do conjunto da população. Pelo que aceitar isto a supor que somos o único sector revolucionário bem intencionado, puro ou altruísta, vai uma enorme distância.


Continuação: (em breve)

 

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