A importância da crítica no desenvolvimento do movimento revolucionário – I, II, III

O seguinte artigo foi traduzido por Liliana Silva (CEL_Lisboa) e será lançado distribuído em três publicações, sendo esta a primeira. A autoria é de José Antonio Gutiérrez e foi pela primeira vez publicado no site anarkismo.net

I.

Não é pouco frequente que escutemos, quando se fala das diferenças entre o anarquismo e as outras correntes de esquerda, que esta seja uma corrente “livre de dogmas”, “aberta sobre si mesma” e “dada ao desenvolvimento mediante a crítica livre”. Isto tem se repetido exaustiva e insaciavelmente, assumindo-se em comum tal coisa como uma virtude suprema do anarquismo. Contudo, ao menor contacto com a verdade dos círculos anarquistas, entramos numa realidade bem diferente destas declarações auto-complacentes. Apesar de tudo o que se diz acerca da falta de “dogmatismo” no anarquismo, o que encontramos frequentemente é a falta de reflexão sistemática juntamente com uma maior desobediência a dogmatismos, onde a análise tranquila da realidade é substituída por uma série de categorias apriorísticas e incompatíveis com a mesma. Longe de encontrar um ambiente favorável ao desenvolvimento da crítica, encontramos um movimento paranóico que tende a levar a crítica como um ataque, sendo demasiado tímido para discutir em termos efetivos as verdadeiras variações junto do seu seio. Assim, encontramos um movimento que, longe de aceitar as diferenças, discutindo-as ativamente, está sempre pronto a excomungá-las. Tal coisa não deriva desta ou daquela publicação, desta ou daquela personalidade do movimento (embora hajam claramente aqueles que levam esta tendência a níveis patológicos), sendo sim um defeito profundamente enraizado no movimento libertário que afecta praticamente todos os seus sectores e correntes.

Na verdade, o anarquismo ainda tem muitas falhas. Enquanto movimento, sofremos de bastantes coisas, este é ainda pouco desenvolvido, apesar da nossa enorme história. No entanto uma das carências que mais nos atinge é a ausência de uma tradição autêntica de debate. Porque onde não há discussão há dogmatismo e onde há dogmatismo, há ignorância. Onde a discussão não surge livremente, o que prevalece é a falta de dinamismo nas ideias e a desconexão com a realidade. Em semelhante ambiente não é possível proporcionar-se o crescimento de um movimento saudável, com ambições de transformar o mundo atual.

II.

Carecemos de uma tradição de discutir. Estamos demasiado acostumados a “denunciarmo-nos” em vez de discutir. Há muitos do nosso movimento que são mais próximos ao espírito de Torquemeda que ao espírito de Bakunin. Há muitos que preferem desperdiçar o seu tempo a “vigiar” os passos dos outros anarquistas e a denunciar o que consideram como um desvio, ao invés de contribuir para a construção concreta de um movimento. Assim, o anarquismo aparece em vez de uma ferramenta de transformação do mundo, mais como um conjunto de dogmas elementares, de rudimentos políticos mal dirigidos, de slogans vagos e gerais que substituem a reflexão política séria. A simplificação remove espaço ao pensamento articulado. Temos demasiados defensores auto-proclamados da fé e demasiado poucos anarquistas dispostos a desafiar o presente para explorar novos caminhos para o anarquismo num mundo que não deixa de girar.

Em vez de aceitar as diferenças de opinião como tal e proceder a alterá-las, respeitosamente, energeticamente e sempre com um espírito construtivo, denunciamo-las e desqualificamo-las. Não sabemos debater e frequentemente as nossas discussões têm-se transformado em questões de princípio e todas as divergências táticas são elevadas à categoria dos princípios eternos do anarquismo. Pierre Monatte, o velho anarco-sindicalista francês que se queixava no congresso de Amesterdão (em 1907!) de que “Existem camaradas, que, por tudo, incluindo pelas coisas mais fúteis, sentem necessidade de levantar questões de princípio”. Dito isto, parece que a cada diferença estamos a julgar a razão de sermos anarquistas e as posições divergentes são caricaturadas como “autoritárias”, “totalitárias”, “marxistas”, “reformistas” etc… Rótulos bastante úteis para evitar abordar as discussões de maneira política e não histérica. No nosso movimento, lamentavelmente, tende-se a adornar, qualquer argumentação, com um sem número de adjetivos qualificativos que não apontam nada, absolutamente nada, ao esclarecimento do assunto em debate. Assim, cada debate em torno do anarquismo termina num conflito para ver quem é mais anarquista, quem é que conserva a linha sagrada… e não quem tem a razão à luz da realidade.

Dá a entender que neste ambiente de “denúncias” e ausência de debate, a própria realidade não passa de um aspecto secundário que pouco ou nada contribui para qualquer matéria que esteja em cima da mesa.

III.

Este sectarismo e dogmatismo também se vêem refletidos na nossa propaganda. Temos inclusivamente chegado a extremos em que publicações anarquistas completas gastam uma enorme quantidade de tinta e papel em atacar outros anarquistas, em vez de discutir saudavelmente ou atacar aqueles que realmente fodem a vida a milhões de pessoas neste mundo. Quem age desta maneira causa um enorme dano ao movimento: não somente alimentando tendências centrípetas no anarquismo mas persuadindo leitores não familiarizados com as nossas ideias, de que o anarquismo é um movimento de espírito mesquinho, estreito e pequeno, deslumbrado pelas suas próprias vaidades e insensível aos verdadeiros problemas do nosso tempo. Porquê unir-me a um movimento que está demasiado ocupado com a tarefa inquisitorial para se preocupar com a problemática do quotidiano do conjunto de oprimidos, pobres, explorados e marginalizados?

Esta virulência nos ataques a quem pensa ou age de maneira diferente e este sectarismo, têm chegado ao cúmulo com as possibilidades abertas pela internet e pela comunicação virtual. Hoje em dia qualquer um pode insultar cobarde e gratuitamente desde a comodidade da sua casa e com o brinde da proteção pelo anonimato, organizações ou referentes do movimento libertário que estão a dar a sua cara e pele. Qualquer um pode dar “rédia solta” aos seus incentivos destrutivos e ao seu espírito miserável para condenar os esforços levantados, muitas vezes com enormes sacrifícios por camaradas que se estão a dar aos atos que podem levar-nos a uma alternativa libertária. Com todas as possibilidades abertas pela internet para trocar experiências e discutir, é claro que a maioria dos fóruns são bastante pobres e que onde há mais tráfico de comentários, são apenas para insultar ou desqualificar. Esta é uma realidade extremamente triste e dolorosa para quem quer ser honesto nesta luta.

Isto é próprio de movimentos alienados da realidade, e na verdade, ainda nas fileiras do anarquismo existem muitos que carecem de contacto – num sentido orgânico, obviamente – com o mundo popular ou carecem de qualquer esforço para levantar um trabalho construtivo junto dos explorados. A luta não basta conhecê-la pelos livros da história, sendo que devemos saber fazê-la acontecer no dia-a-dia. Com gente desenraizada das lutas e organizações populares cremos que é difícil um debate efetivamente construtivo, pois ao carecer da experiência prática, são incapazes de manter a discussão no plano da realidade e são facilmente arrastados ao Olimpo das abstrações principais. E daí, às denúncias de “traição ao anarquismo”. Este é o seu verdadeiro fundamento, e portanto frente às diferenças, a sua reação natural é a de se refugiar na seguridade da sua própria facção, um punhado de guardiões da fé.

José Antonio Gutiérrez

Continuação: https://apoiomutuopt.wordpress.com/2017/03/09/a-importancia-da-critica-no-desenvolvimento-do-movimento-revolucionario-iv-v-vi/

Versão ES

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