O grupo de tradução partilhado do CEL_Lisboa e da AIT-SP Lisboa começou a traduzir em Janeiro o livro “Fighting for Ourselves” da Solidarity Federation (Secção do Reino Unido da IWA-AIT). Optámos por iniciar esta aventura pelo capítulo final, em que se analisa o campo de ação do anarco-sindicalismo no século XXI. Iremos publicar semanalmente cada parte deste capítulo, seguindo depois com os restantes capítulos.
ANARCO-SINDICALISMO NO SÉCULO XXI
Introdução
Neste último capítulo, apresentamos a nossa visão sobre o anarco-sindicalismo hoje. Analisamos desde como passar de uma simples organização de propaganda política para um sindicato revolucionário capaz de tomar a iniciativa de organizar e catalisar a luta de classes no âmbito económico e social. Fulcral a esta estratégia é o potencial da ação direta para proporcionar confiança, capacidade e auto-organização dentro da classe trabalhadora, e assim lutar servindo como “escola do socialismo”. Defendemos que um sindicato revolucionário é uma componente essencial para um movimento revolucionário dos trabalhadores. Não só para a organização e catalisação da luta, como também para fornecer tanto uma infraestrutura física como organizacional para a classe operária, e um ponto de partida para inúmeras iniciativas de anti-opressão, auto-educação e cultura, tanto dentro desta como para além das suas fileiras. Apresentamos como é que este tipo de organização política e económica pode ajudar o reaparecimento de um movimento militante e revolucionário dos trabalhadores e a necessidade de unificar todos os trabalhadores revolucionários do mundo. Para finalizar, iremos fazer um esboço de como uma revolução social pode vir a ser numa escala mundial e o papel revolucionário que os sindicatos revolucionários devem ter nesse processo.
De organização de propaganda a sindicato revolucionário
De certa forma é mais fácil começar com o que não deve ser feito. A história dá-nos vários exemplos. Certamente, os anarco-sindicalistas não querem funcionar como uma organização política de anarquistas. Organizações políticas deixam a tarefa da organização da luta para sindicatos reformistas ou ação espontânea por parte dos trabalhadores. Deixando esta tarefa a sindicatos reformistas ou outras organizações, os métodos utilizados serão representativos, que não nos empoderam. Isto corta o poder da ação direta de servir tanto como um meio de obter resultados e também como uma escola da mudança social. A principal lição retirada da luta organizada de acordo com o pensamento reformista é como ser-se levado a fazer greve e a recuar de novo, com um sentimento de enorme desmoralização ao ver os dirigentes sindicais a serem derrotados em situações que pareciam ganhas. Não experienciamos a auto-organização, o controle da nossa luta e a confiança e euforia de forçar concessões diretamente através da ação coletiva.
Por outro lado, rejeitamos a ideia de que as condições criadas pelo capitalismo irão espontaneamente dar à revolta dos trabalhadores. As condições podem moldar a luta; não a garantem. Para nós a parte mais importante da resistência dos trabalhadores é a organização; quanto melhor for a organização, maior é a chance de sucesso. É de notar que quando comunistas de conselho como Pannekoek (para quem “a organização nasce espontânea e imediatamente”171) defendiam a organização “espontânea” dos trabalhadores em comités de greve na Alemanha e em outras partes, faziam-no devido a terem centros sindicais altamente organizados. Assim, quando a burocracia sindical não apoiou as suas ações ficaram numa posição que deu ao lançamento de greves sem aviso prévio, à formação de comités de greve e assim por diante. Um padrão semelhante tem sido avistado no Reino Unido nos anos recentes, com ação não oficial concentrada nos trabalhadores altamente organizados como o serviço postal, recolha de lixo e electricistas de várias companhias. Na ausência de tal organização (e muitos locais de trabalho sindicalizados não são organizados, como estabelecemos no Capítulo 1) ataques capitalistas frequentemente acabam em resignação, desmoralização e derrota, que tem maioritariamente sido o caso da Grã-Bretanha desde os contra-ataques neoliberais dos anos 80. À medida que esta cultura de derrota se instala, torna-se cada vez mais entranhada, tornando-se cada vez mais impossível imaginar outras formas de proceder, enquanto se enraíza o mantra neoliberal de “não existe alternativa”.
Assim, não podemos nem deixar a organização da luta de classes nas mãos de reformistas, nem esperar que a luta apareça espontaneamente. Precisamos de organizar a luta por nós próprios sob as linhas da ação direta. Se não for possível fazê-lo de momento, precisamos de ter essa capacidade como objetivo; temos que passar de uma organização de propaganda política para um sindicato revolucionário. A Solidarity Federation descreve-se a si mesma como uma iniciativa de sindicalismo revolucionário para demonstrar esta intenção. Até agora, as batalhas que temos iniciado têm sido de pequena escala e, frequentemente, focadas em problemas individuais. Porém isso é apenas um reflexo dos limites das nossas capacidades atuais, que estamos constantemente à procura de expandir. Organizações especificamente políticas não são suficientes para esta tarefa. Temos o objetivo de tornarmo-nos numa organização que é, ao mesmo tempo, política e económica.
Também rejeitamos a ilusão da reforma de sindicatos burocráticos, que é comum entre socialistas e não é insólita no meio anarquista. A burocratização é um processo unilateral; ainda que, teoricamente, a reversão deste processo seja possível através de um movimento de base forte o suficiente, seria um desperdício de energia procurar reformas sindicais à custa da ação direta (um erro que ajudou a cooptação do sindicalismo britânico, como vimos no Capítulo 2). Seria muito mais produtivo utilizar a energia e auto-organização precisa para desfazer burocracias enraizadas e apoiadas pelo estado na organização da ação direta e reagrupamento dos trabalhadores em organizações baseadas nos princípios que defendemos – sindicatos revolucionários. Isto não significa que devamos rasgar os nossos cartões de afiliado de um sindicato reformista, mas sim abandonar quaisquer pretensões de reformar a estrutura sindical existente e procurar uma estratégia anarco-sindicalista, independentemente da adesão a sindicatos reformistas.
Um argumento frequentemente usado contra o sindicalismo revolucionário é o número de membros. Sindicatos são organizações de massas, que excedem a escala do que é possível ser organizado em linhas revolucionárias. Assim é nos dito que ou se pode ser revolucionário, ou um sindicato, mas nunca ambos ao mesmo tempo. Isto vai dar ao argumento reformista que se mascara como “pragmatismo” de que devemos abandonar a nossa oposição “ideológica” a métodos reformistas – eleições sindicais, oficiais de tempo inteiro, funções representativas, fundos do estado, cumprimento da lei e assim por diante – de forma a crescer para uma “organização de massas”. Isto poderá ser uma forma de expansão – mas expansão para o quê? Não temos nenhum interesse na criação de novas burocracias, que são o resultado garantido de qualquer tipo de sindicato que não tenha como base princípios claramente anticapitalistas e anti-estado. No mundo “pós-político” neoliberal, temos que ter cuidado com aqueles que negam motivações ideológicas. Esta negação em si é uma manifestação de ideologia. A ideologia reformista apresenta-se sempre como “pragmatismo” pós-ideológico, como se isto de alguma forma tornasse a sua adoção da colaboração de classes menos ideológica. De facto, sindicatos revolucionários começam como minorias ínfimas da classe trabalhadora; porém isso não significa que não somos capazes de organizar lutas de classe para além dos nossos números limitados, e trazer trabalhadores para o sindicalismo revolucionário através das nossas vitórias na escola da luta.
Em todo caso, um olhar mais atento aos sindicatos corporativos desfaria a noção simplista de que o facto destes serem “organizações de massas” é significativo. É verdade que, neste país, os sindicatos corporativos têm uma adesão enorme, chegando os maiores a um milhão de membros cada. Mas o que significa isto na prática? No dia a dia, estes sindicatos são geridos por uma burocracia de oficiais pagos e uma minoria de representantes leigos. Estes representantes- porta-vozes, representantes de saúde e segurança, entre outros – são frequentemente os mais militantes nos seus locais de trabalho. Não é raro que locais de trabalho menos militantes nem sequer tenham um representante, ou reuniões de membros regulares. Quando as reuniões são feitas, e por vezes até se verifica oposição da burocracia de as fazer, normalmente apenas uma pequena minoria dos membros inscritos comparecem. Isto só muda com o aparecimento de uma grande disputa, altura em que as reuniões enchem para a maioria, se não a totalidade, dos membros e até podem surgir novos membros para se juntarem e participarem. Então, na prática, nos locais de trabalho, sindicatos corporativos são organizações de trabalhadores ativistas que, entre disputas, organizam reuniões de massas de trabalhadores. A estratégia que estamos a definir apenas reconhece esta realidade do que é um sindicato.
Os sindicatos corporativos são centralizados, burocráticos e hierárquicos – ou seja, não ligam trabalhadores ativistas uns com os outros de forma horizontal. Os locais de trabalho estão conectados apenas pelo sector ou região, muitas vezes compostos por oficiais a tempo inteiro, ou representantes leigos que procuram subir para esse cargo, e, não raramente, por “socialistas revolucionários” com os olhos no caminho do sindicalismo corporativo. Consequentemente, trabalham contra a circulação e coordenação de lutas auto-organizadas. Trabalhadores ativistas enquanto porta-vozes em diferentes áreas ou departamentos estão limitados a comunicarem uns com os outros através dos “canais apropriados”, dando ao aparato do sindicato a oportunidade de mediar, difundir e controlar os membros de base, no caso de começarem a ter ideias acima do seu posto (como realizar uma greve que havia sido cancelada pela administração central, ainda que houvesse muito apoio por parte dos trabalhadores de base, algo frequente nas relações industriais britânicas recentes), fazendo com que vários na esquerda defendam algum tipo de rede de base de ativistas à parte da estrutura do sindicato.
O nosso antecessor, o Direct Action Movement, esteve envolvido nestas redes mas chegou à conclusão de que a natureza destes grupos e da política daqueles que os tentam organizar têm significado o seu inevitável falhanço. Desde a Segunda Guerra Mundial, temos visto vários grupos políticos tentarem organizar redes de base, desde aquelas estabelecidas pelo Partido Comunista entre os anos 50 e 60, como os Flashlight e os Building Worker’s Charter, as dominadas pelo Partido Socialista dos Trabalhadores nos anos 70 e, claro, os Broad Lefts, dominados pela Militant Tendency (agora Partido Socialista). Escusado será dizer que estes grupos marxistas não tardaram a manipular as bases para os seus próprios fins, mesmo que provocassem o detrimento dos militantes e trabalhadores envolvidos. Por exemplo, a Building Worker’s Charter, que tinha grande apoio na indústria da construção, não compareceu na massiva e amarga greve dos engenheiros civis no início dos anos 70 devido à manobragem do PC. Assim, não só não conseguiram fornecer um exemplo de alternativa para os sindicatos reformistas numa greve crucial, mas também desmoralizaram os apoiantes da Building Worker’s Charter, o que levou ao seu desmoronamento. Outra vez, em 1973, quando o International Socialists (agora o Partido Socialista dos Trabalhadores, SWP) tentou estabelecer um movimento de base, os grupos dominados pelo PC boicotaram a conferência de lançamento do movimento, com o jornal Morning Star a denunciar todo o evento como um esquema da IS. Vimos isto mais uma vez em 2011 com a implosão da National Shop Stewards Network (NSSN), quando o PS tentou torná-la numa frente anti-cortes e a maioria dos anarquistas, sindicalistas e ativistas independentes retiraram-se.
Seria um erro, no entanto, culpar a falta de política como influência marxista maligna. Contrariamente, devemos olhar para a natureza destes grupos de base per se. Estes não são constituídos por massas de trabalhadores comuns, mas sim por ativistas de sindicatos corporativos (frequentemente membros de grupos políticos), afundando as suas diferenças políticas até ao mínimo ponto de convergência – sindicalismo militante. Talvez uma citação de um jornal de um dos movimentos de base de mais sucesso dos anos 70, a NALGO Action Group, ajudará a ilustrar. Um editorial declarou: “O futuro desenvolvimento da NALGO Action Group permanece, como sempre, nas mãos dos seus apoiantes, cujas convicções políticas são menos importantes do que o seu desejo comum de trabalhar por uma mais democracia e militância dentro da NALGO e de (o) maior movimento sindicalista.”(172) Aqui, os problemas são semelhantes àqueles do sindicalismo “neutro”. O resultado não é uma rede horizontal de trabalhadores ativistas, mas o mínimo ponto de convergência de sindicalismo corporativo. Isto significa que vários militantes e revolucionários bem intencionados acabam por tornar-se soldados para agendas esquerdistas, como a reforma do sindicato ou aventuras de política partidária (como aconteceu com o DAM). Isto não significa que estas iniciativas não podem servir de veículo para os trabalhadores começarem a tomar a luta pelas suas próprias mãos. As vitórias recentes para os electricistas da “Sparks” são um exemplo claro desse potencial, organizando-se à volta de um problema específico (cortes de salário) em vez de uma agenda de reforma de sindicato. No entanto, para os anarco-sindicalistas, estes sindicatos de base, tal como o sindicalismo corporativo, não são um substituto para o sindicalismo revolucionário.
Embora seja sempre necessário organizar com a maior quantidade de trabalhadores possível à base da classe, os sindicatos que procuramos construir não podem diluir os seus princípios pelo mínimo ponto de convergência, nem nos devemos contentar com andarmos colados às lutas organizadas pelos sindicatos dominantes que, debaixo do neoliberalismo, significa normalmente a derrota vendida como vitória. Em vez disso, devíamos procurar construir organizações de trabalhadores revolucionárias baseadas em princípios claramente anticapitalistas e anti-estado que podem tomar a iniciativa na organização das lutas. É isto que a Solidarity Federation quer dizer quando se descreve a si mesma como uma iniciativa de sindicalismo revolucionário. Tendo reconhecido que os sindicatos existentes são apenas uma minoria de ativistas e tendo dispensado a falácia de que “a política começa aos milhões”, reconhecemos que as lutas diárias são políticas. A pergunta torna-se uma questão prática – como é que podemos organizar ação direta coletiva por nós próprios?
Nós unimos a política e a economia porque assim reflete-se a realidade do capitalismo. A classe trabalhadora é ao mesmo tempo oprimida e explorada. Se quisermos alguma vez ser verdadeiramente livres, temos que desafiar tanto a exploração capitalista e o poder que o capitalismo e o estado têm sobre nós. Esta junção de exploração e opressão pode ser vista até no mais pequeno local de trabalho ou ação comunitária. Quando os trabalhadores se organizam, desafiam o “direito” da gerência de gerir. Quando os moradores se organizam, desafiam o “direito” do senhorio à sua propriedade privada. Não importa muito se a organização toma a forma de uma luta por um aumento de salário, redução da renda ou resistência a tentativas de imposições de novas condições de trabalho ou residência. Ao lutar contra um, luta-se contra o outro; o económico e o político não conseguem ser separados. Ao fazer greve pelo aumento de salário, o poder dos trabalhadores de ganhar melhores condições de trabalho aumenta e vice versa. O sindicato revolucionário une o político e o económico, procurando organizar ação direta coletiva aqui e agora, sem seguir a direção de reformistas ou esperar que as lutas surjam espontaneamente.
Tradução de Clara Orfiso, Filipe C., e Mariana G.