Tendo recentemente sido o aniversário da morte de Piotr Kropotkin e do último grande evento público anarquista na União Soviética, e homenageando aquele que muito aprofundou o conceito de Apoio Mútuo, publicamos para começar um artigo de Kropotkin, do nº21 do jornal Freedom de Junho de 1888.
Nota inicial: o seguinte texto foi adaptado de forma a ter uma linguagem mais inclusiva, onde antes dizia “homens”, substituímos por “pessoas”.
Seremos boas o suficiente?
Uma das objecções mais comuns ao Comunismo é que nem todas as pessoas são boas o suficiente para viver num estado Comunista. Não se submeteriam a um Comunismo compulsório, mas também não estão ainda preparadas para serem livres, num Comunismo Anarquista. Séculos de educação virada para o individualismo, tornaram-nos demasiado egoístas e mesquinhos. Escravatura, submissão ao mais forte e trabalho debaixo do chicote da necessidade, renderam-nos inaptos para uma sociedade em que todos seriam livres de todas estas obrigações, excepto aquelas derivadas de um ato voluntário do mesmo, e da desaprovação dos outros caso ele não cumpra esse compromisso. Assim sendo, é-nos dito que é necessário um estado intermédio, antes de se transitar para o Comunismo.
Velhos ditados numa nova forma; palavras ditas e repetidas desde o primeiro esforço de reforma, política ou social, em qualquer sociedade humana. Palavras estas que ouvimos antes da abolição da escravatura; palavras estas ditas há vinte e quarenta séculos atrás, por aqueles a quem o conforto abomina estas mudanças repentinas, a quem a coragem de pensar diferentemente afronta, e que eles próprios não sofreram suficientemente das inquietações da sociedade presente para sentirem a profunda necessidade de mudança!
A humanidade não é “boa” o suficiente para o Comunismo, mas será que o é para o Capitalismo? Se todas as pessoas fossem gentis, amáveis e justas, não se explorariam mutuamente, apesar de possuírem os meios para o fazer. Com uma humanidade assim, não haveria perigo se alguns possuíssem capital. O capitalista estaria ansioso em partilhar os seus lucros com os trabalhadores, e os trabalhadores mais bem remunerados, com aqueles em necessidade. Se as pessoas fossem realmente prudentes, não produziriam veludo, e outros artigos de luxo, enquanto não fosse garantido alimento a todos, não construiriam palácios enquanto alguns vivessem em barracas.
Se as pessoas tivessem um profundo sentimento de equidade desenvolvido não iriam oprimir outras pessoas. Os políticos não enganariam os seus eleitores; o Parlamento não seria uma casa de conversa e de passar a perna, e a polícia de Charles Warren iria recusar-se a andar à bastonada com os manifestantes da Trafalgar Square. Se as pessoas fossem nobres, dignas, e menos egoístas, nem sequer um mau capitalista seria uma ameaça; os trabalhadores teriam reduzido o seu papel ao de um simples gerente-camarada. Nem sequer um rei seria perigoso, porque o seu povo iria apenas considerá-lo como um companheiro incapaz de fazer melhor trabalho, e portanto confiado a assinar uns estúpidos papéis enviados por outros caprichosos que gostavam de apelidar-se reis.
Mas as pessoas não são estas criaturas de mente-aberta, independentes, previdentes, amorosas, e amistosas que nós gostaríamos que elas fossem. E é precisamente por isso, que elas não podem continuar a viver sob o presente sistema que permite que se explorem e oprimam umas às outras. Tomemos, por exemplo, aqueles alfaiates que, empurrados pela miséria, marcharam pelas ruas no passado domingo, e suponhamos que um deles havia herdado umas cem libras de um tio americano. Com estas cem libras com certeza que este não irá começar uma associação produtiva por uma dezena de semelhantes alfaiates na miséria, e tentar melhorar as suas condições. Ele tornar-se-á num explorador da indústria têxtil. E, assim sendo, dizemos que numa sociedade onde as pessoas são tão más como este herdeiro americano, é muito difícil para ele ter alfaiates miseráveis à sua volta. Assim que seja possível, ele irá explorá-los; enquanto que se estes mesmos alfaiates tivessem uma vida assegurada através das lojas Comunistas, nenhum deles deixar-se-ia ser explorado para enriquecer o antigo camarada, e o jovem empresário não iria tornar-se a besta que com certeza irá acabar por tornar-se se continuar a ser empresário.
Dizem-nos que somos muito servis, demasiado arrogantes, para ser colocados sob instituições livres; mas nós dizemos que é absolutamente devido a sermos tão servis que não podemos continuar a viver nas presentes instituições, que favorecem o desenvolvimento da servidão. Vemos como os Britânicos, os Franceses, e os Americanos demonstram a mais repugnante servidão para Gladstone, Boulanger ou Gould. E nós concluímos que numa humanidade já dotada com tais instintos servis, que é ainda pior ter as massas forçadamente privadas de uma educação superior, e compelidas a viver sob a presente desigualdade de riqueza, educação, e conhecimento. A instrução superior e a igualdade de condições seriam as únicas maneiras de destruir os instintos de servidão herdados, e nós não conseguimos entender como é que os instintos de servidão podem tornar-se argumentos para manter, nem que seja por mais um dia, a desigualdade de condições; por recusar a igualdade de instrução de todos os membros da comunidade.
O nosso espaço é limitado, porém submete à mesma análise qualquer um dos aspectos da nossa vida social, e verás que o presente sistema capitalista, autoritário, é absolutamente inapropriado para uma sociedade onde as pessoas neste momento são tão pouco precavidas, tão gananciosas, tão egoístas, e tão escravizáveis. É por isso que quando ouvimos pessoas a dizer que os Anarquistas imaginam o ser humano de uma forma muito melhor do que a da realidade, meramente perguntamo-nos como é que seres tão inteligentes repetem tal barbaridade. Então nós não dizemos continuadamente que o único meio de fazer com que sejamos menos gananciosos e egoístas, menos ambiciosos e escravizáveis ao mesmo tempo, é eliminando as condições que favorecem o crescimento do egoísmo e da ganância, da escravidão e da ambição? A única diferença entre nós e aqueles que fazem a objecção acima é esta: Nós, ao contrário deles, não exageramos os instintos inferiores das massas, e não fechamos complacentemente os olhos aos igualmente maus instintos das classes altas. Nós mantemos que tanto governantes como governados são deteriorados pela autoridade; tanto exploradores como explorados são deteriorados pela exploração; enquanto os nossos oponentes parecem admitir que existe um tipo de sal na terra – os governadores, os patrões, os líderes – que, felizmente, previnem essas más pessoas – os governados, os explorados, os liderados – de se tornarem piores do que o que já são.
Há uma diferença, e uma muito importante. Nós admitimos as imperfeições da natureza humana, mas não fazemos excepção para os governantes. Eles fazem-no, mesmo que muitas das vezes inconscientemente, e devido a não fazermos tal excepção, dizem-nos que somos sonhadores, “pessoas não práticas”.
Uma velha discussão, aquela sobre as “pessoas práticas” e aquelas que “não são práticas”, as chamadas Utópicas: uma discussão renovada a cada mudança proposta, e que termina sempre com a derrota total daqueles que se auto proclamam pessoas práticas.
Muitos de nós havemos de nos lembrar da discussão que rompeu na América antes da abolição da escravatura. Quando a emancipação total dos negros foi advogada, as pessoas práticas diziam que se os negros não fossem obrigados a trabalhar através das chicotadas dos seus amos, que não trabalhariam de nenhum modo, e cedo tornar-se-iam um fardo para a comunidade. Chicotes grossos podiam ser proibidos, disseram eles, e a grossura dos chicotes pode ser progressivamente reduzida por lei para meia polegada primeiramente e depois a uma mera insignificância de décimos; mas algum tipo de chicote tem de ser mantido. E quando os abolicionistas disseram – tal como nós dizemos agora – que o prazer de produzir o seu próprio labor seria uma força muito mais poderosa para induzir a trabalhar que o mais grosso dos chicotes, disseram-lhes ‘Que parvoíce, meu amigo,’ – assim como nos dizem agora. ‘Tu não conheces a natureza humana! Anos de escravatura tornaram-nos imprudentes, preguiçosos e submissos, e a natureza humana não pode ser alterada de um dia para o outro. Sem dúvida que contigo trazes as melhores das intenções, mas és “pouco prático”.’
Bom, durante algum tempo os homens práticos andaram, à sua maneira, a elaborar planos de emancipação gradual dos negros. Mas, o espanto!, os planos provaram-se pouco práticos, e a guerra civil, a mais sangrenta de que há registo – rebentou. Só que a guerra resultou na abolição da escravatura, sem qualquer período de transição; – e vejamos, nenhuma das terríveis consequências previstas pelas pessoas práticas se seguiram. Os negros produzem, são trabalhadores e laboriosos, são poupados – até demasiado poupados, de facto – e o único arrependimento que pode ser expresso, é o de que a medida defendida pelo campo não prático – cheio de igualdade e parcelas de terra – não tenha sido realizado: teria nos salvo de muitos mais problemas agora.
Por volta da mesma altura surgiu uma discussão semelhante na Rússia, e a causa era esta. Haviam na Rússia 20 milhões de servos. Por gerações haviam estado sob a autoridade, ou melhor, sob a vara de vidoeiro dos seus donos. Açoitados por lavrar mal o solo, açoitados pela falta de limpeza nas suas casas, açoitada pela tecelagem imperfeita dos seus tecidos, açoitados por não casar mais cedo os seus meninos e meninas, açoitados por tudo. Submissos, imprevidentes, eram as suas características de renome.
Agora vieram os Utópicos e exigiram nada mais que o seguinte: Completa liberação dos servos; abolição imediata de qualquer obrigação do servo ao senhor. Mais do que isso: imediata abolição da jurisdição do senhor e abandono de todos os assuntos que este julgou anteriormente, aos tribunais de camponeses eleitos pelos camponeses onde se julgará, não de acordo com a lei que eles não conhecem, mas de acordo com os seus costumes não escritos. Tal era a proposta impraticável do campo não prático. Foi tratado como uma mera loucura por parte das pessoas práticas.
No entanto, felizmente, havia nesse tempo na Rússia uma boa dose de impraticalidade no ar, e foi mantida pela impraticalidade dos camponeses, que se revoltaram com paus contra armas, e se recusaram a submeter, não obstante os massacres, e assim forçaram o estado de espírito não prático a tal ponto que permitiu que o campo não prático forçasse o Czar a assinar o plano – ainda que um tanto mutilado. A maioria das pessoas práticas apressou-se a fugir da Rússia, não acabassem elas com as gargantas cortadas uns dias a seguir da promulgação do esquema impraticável.
Porém, tudo seguiu calmamente, apesar dos muitos erros ainda cometidos pelas pessoas práticas. Estes escravos que tinham a reputação de imprudentes, brutos egoístas, e tanto mais, demonstraram tão bom senso, tal capacidade de organização que ultrapassaram as expectativas dos mais Utópicos; e em três anos depois da Emancipação a fisionomia geral das aldeias já tinha-se alterado totalmente. Os escravos estavam a tornar-se Pessoas!
Os Utópicos ganharam a batalha. Provaram que eles é que eram as pessoas práticas, e que aqueles que pretendiam ser práticos eram imbecis. E o único arrependimento expresso agora por todos aqueles que conhecem o campesinato russo é, que demasiadas concessões foram feitas a esses imbecis práticos e egoístas de visão limitada: que os conselhos da esquerda do campo não prático não foram seguidos por completo.
Não podemos dar mais exemplos. Mas nós sinceramente convidamos aqueles que gostam de raciocinar por si mesmos a estudar a história de todas as grandes mudanças sociais que ocorreram na humanidade desde o levantamento das Comunas, da Reforma, aos nossos tempos modernos. Irão ver que a história não é nada mais que uma luta entre governantes e governados, opressores e oprimidos, e que nesta luta o campo prático posiciona-se sempre do lado dos governantes e dos opressores, enquanto o campo não prático posiciona-se com os oprimidos; e verão que a batalha acaba sempre com a derrota final do campo prático depois de muito sangue derramado e sofrimento, devido ao que eles chamam de ‘o seu prático bom senso’.
Se ao dizerem que não somos práticos os nossos oponentes querem dizer que nós conseguimos prever a marcha dos acontecimentos melhor que os práticos cobardes de curto-alcance, então eles estão correctos. Porém se querem dizer que eles, as pessoas práticas, têm uma visão mais apurada sobre os acontecimentos, então mandamo-los à história e pedimos que se posicionem de acordo com os seus ensinamentos antes de fazer tão presunçosa afirmação.
Piotr Kropotkin, Freedom 21, Junho de 1888
Tradução e adaptação de Clara Orfiso (AIT-SP e CEL-Lisboa) e Luís Alonso (CEL-Lisboa)