Sindicalismo Revolucionário – Neno Vasco

Este texto do anarquista e sindicalista português Neno Vasco (na foto) constituía uma brochura, que aqui transcrevemos (com uma atualização ortográfica) a partir de extratos encontrados nos jornais A Batalha Anarquista (1914) e O Ferroviário (1915). O texto trata de conceber uma organização operária capaz de enfrentar o aparato de dominação capitalista, e nesse sentido, Neno preocupa-se em discutir os problemas em torno das diferentes formas de organização operária, argumentando em defesa do modelo de “sociedades de resistência”. O sindicato, ou sociedade de resistência, em vez de servir para colmatar as lacunas do capitalismo assegurando a subsistência dos produtores através do mutualismo e cooperativismo, deveria antes ser encaminhado para a inevitabilidade da revolução social, “a expropriação da burguesia em proveito dos grupos livres e produtores, a socialização da terra e dos meios de produção” para resolver o problema social. De certa forma, este texto será um prelúdio da “Conceção Anarquista do Sindicalismo”, um guia sobre como o sindicato será capaz de se afirmar como a organização operária do futuro capaz de alcançar a sociedade comunista – a sociedade de livres e iguais.

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Sumário

  1. A Organização Operária
  2. O Sindicato
  3. Constituição do Sindicato
  4. O Cofre Sindical
  5. Valor do cooperativismo
  6. O Sindicato de bases múltiplas
  7. Valor da resistência
  8. A arbitragem

A Organização Operária

Defensores de elevados idealismos combatem a «organização». É muitas vezes pura questão de palavras; pois que na prática todos quantos vivemos somos organizadores… A associação identifica-se com a organização; a união pura e simples já a supõe. Unidades que trabalham em sentidos diversos, que não se coordenam, que não se combinam, que não se organizam – que não se adaptam a um fim comum – não se somam sequer, e muito menos se associam. E quanto mais perfeita e útil é a união, mais bem organizada está.

Outras vezes repudia-se a organização permanente: a associação (ou organização que é o mesmo) deve cessar com o fim para que se constituiu.

Decerto! As organizações artificiais são inúteis e nocivas; o órgão morto, vazio de função, embaraça.

Mas o tempo não pode ser elemento de discussão; a organização durará um segundo ou um século, conforme as necessidades. Ela será permanente, se permanente for o fim; dê-se-lhe um esboço duradoiro, e ela será duradoira e eficaz.

Ora, a ação operária é na realidade permanente. A greve não passa dum episódio. Ainda que ela fosse um fim (e deve ser apenas um meio e um exercício), a ação das organizações operárias seria constituída dum modo permanente pela preparação para a luta, pela acumulação de meios de defesa, morais e materiais, pela educação associativa, pela instrução, etc.

O segredo da vitalidade da associação está precisamente em agir constantemente, em manter vivo o espírito de iniciativa, a atividade dos associados, em acender a sua curiosidade por todas as questões, grandes ou pequenas, teóricas ou práticas. A ação e o estudo são inseparáveis.

A crítica incide ainda as mais das vezes, sobre o conteúdo da organização, sobre as ideias dos associados. Aqui já não é a confusão das palavras, mas de ideias; confunde-se a organização com o seu conteúdo.

A organização será evoluída ou retardatária, consciente ou inconsciente, livre ou autoritária, emancipada ou escrava, maleável ou formalista, ativa ou morosa, leve ou pesada, segundos os indivíduos que a compõem, as suas ideias e a sua energia, as suas tendências e os seus hábitos.

A organização não é decerto uma entidade independente dos que a fazem.

Aos ativos, aos conscientes, aos emancipados, compete comunicar aos associados a sua energia, as suas conceções, o seu procedimento, pela palavra, pelo exemplo, como se faz entre o povo.

Quanto á organização, às suas vantagens na diminuição do esforço e na multiplicação dos resultados, na defesa da liberdade a valer, na emancipação das consciências, são o facto mais abundantemente provado que conhecemos em matéria social.

O Sindicato

Os sindicatos, ou sociedades de resistência são as associações operárias destinadas à defesa dos interesses dos trabalhadores contra a exploração dos capitalistas. Recebem diversos nomes segundo os países: sindicatos, ligas de resistência, uniões de ofício, associações de classe, trade-unions, etc., Corporativismo (ou unionismo, ou sindicalismo) é o conjunto de ideias e de sistemas sobre a organização operária, a sua ação e os seus métodos.

Essas disposições empregam-se por vezes em sentidos um tanto distintos, em virtude da diferença de métodos e de tendências de diversas organizações.

Especialmente nos Estados-Unidos e na Inglaterra a sociedade operária é um grupo fechado de difícil entrada. A organização operária é uma espécie de aristocracia do trabalho. As corporações de ofício agem isoladamente e a sua ação reduz-se a melhoramentos em favor dos associados, sem mesmo tender à abolição do privilégio capitalista, sendo estritamente legal, apesar da lei feita e aplicada pelos burgueses e em seu próprio favor. A «trade-union» (expressão inglesa: União de ofício) faz política parlamentar, apoiando o candidato que mais promessas lhe fizer seja qual for o partido!

Este «trade-unionismo» vai morrendo por culpa dos seus erros e defeitos.

Na Inglaterra o «trade-unionismo» vai aderindo ao socialismo ou ao sindicalismo revolucionário.

Nos Estados-Unidos já há mesmo uma forte organização (Federação dos Trabalhadores do Mundo)[1] agindo sobre o terreno da luta de classes repudiando o parlamentarismo. A sociedade operária alemã não é, a bem dizer, de resistência. A resistência é ali disfarçada, encoberta, sufocada, pelo mutualismo e pela legalidade. As derrotas têm sido majestosas e as conquistas poucas.

As organizações alemãs agrupam muita gente, reúnem enormes somas, mas… são inertes, têm medo de empregar a sua força, como aquele que comprou um guarda-chuva e o meteu debaixo do capote com pena de o molhar. Quando se mexem, são pesadas e tímidas, cruzam os braços e lutam a dinheiro…

A sua política é a política parlamentar socialista.

É um modelo que vai perdendo o crédito; até na Alemanha começa a reação.

A sociedade de resistência mais perfeita e a mais completa, embora não sem defeitos, é o «sindicato» francês, aderente à Confederação Geral do Trabalho. É puramente de resistência, facilitando a entrada de todos, procurando agrupar o maior número, mas sem por isso deixar de agir constantemente. Trata de conquistar melhoramentos (sobretudo redução de horas) fazendo assim exercício para a greve geral revolucionária e para a expropriação dos meios de produção e de transporte. Não aceita a política parlamentar, fazendo, porém, luta política (contra o Estado, contra o Governo, desde o ministro ao polícia, mas especialmente contra o militarismo), pois o poder político é defensor do capitalismo. Mas essa luta (assim como a económica) é pela ação direta, operária, e não indireta por meio dos deputados no parlamento.

Este método – que por influência da França vai sendo chamado «sindicalismo» – é seguido já pela Suíça francesa, e em parte pela Holanda, pela Espanha e pelas repúblicas sul-americanas, ganha terreno na Itália e nos Estados Unidos e começa a penetrar na Inglaterra e na própria Alemanha.

Constituição do Sindicato

O grupo, que tomou a iniciativa da constituição do sindicato, reúne-se e encarrega-se um indivíduo ou uma comissão de elaborar um projeto de estatutos, de pacto associativo, que será depois discutido em assembleia geral, após convite dirigido a todos os operários que se procura agremiar.

Esse pacto social deve ser o mais resumido possível, despido de vãos formalismos e de estorvos à ação sindical. Em todos os seus atos, o sindicato deve abolir as formalidades inúteis, simplificando tudo. Quem quer agir depressa e muito, constantemente, veste pouca roupa e foge às… camisas de força; quem empreende uma viagem longa, para caminhar ligeiro leva bagagem leve. Em França uma ativa organização de camponeses, gente prática e pouco formalista, tem uns estatutos com 9 artigos.

Em geral, o pacto social deve estatuir apenas estes pontos:

  1. – Os fins do sindicato, que a nosso ver devem ser: a) imediatos, o melhoramento das condições presentes, a propaganda associativa, a educação; b) a emancipação integral do trabalhador.
  2. – A não participação do sindicato na luta dum partido político.
  3. – A não admissão de patrões e pelo menos a exclusão da administração dos que têm compromissos com os patrões, sendo seus empregados de confiança, como os contramestres; exclusão rigorosa, igualmente de políticos profissionais. Só poderão fazer parte do sindicato os salariados enquanto exercerem o seu ofício, salvo o caso de desocupação forçada.
  4. – Uma administração reduzida à sua mais simples expressão: um secretário (ou mais, se o exigir o serviço) e um tesoureiro; quando muito alguns conselheiros e revisores de contas. Estas funções são puramente administrativas, e diretivas; trata-se dum serviço, dum trabalhão a executar e escrupulosamente cumprido. Estes funcionários não mandam, mas trabalham; não impõem ideias ou vontades próprias, mas executam resoluções tomadas.

Devem ser substituídos com frequência, não só porque estas funções são um encargo e não uma honra ou um privilégio, mas também porque contribuem para a educação dos operários.

Havendo absoluta necessidade de funcionários pagos, permanentes, devem estes receber um salário não superior ao que tinham como operários, devendo naturalmente todas as despesas de propaganda, organização e administração ficar a cargo do sindicato ou federação de sindicatos. Não havendo necessidade e podendo o serviço ser bem assegurado por voluntários, podem pagar-se os dias de trabalho perdidos por causa da associação.

A estes pontos podem juntar-se outros que variam segundo as circunstâncias: instituição de biblioteca, de escolas profissionais, de obras de propaganda, etc.

O Cofre Sindical

O sindicato e a federação sindical têm diversas despesas – para a propaganda, a solidariedade, a organização, a administração, a ação – e precisam, portanto, de dinheiro. A quota neste caso, representando um sacrifício em favor da ação operária essencial, é em geral uma prova de consciência. Mas é preciso não perder de vista que o sindicato procura recolher no seio sobretudo as boas vontades e que quotas demasiado elevadas tornam o sindicato uma corporação fechada e privilegiada, em luta com a parte mais miserável da classe.

É preciso acima de tudo não confundir a quota, menos elevada, com o entesouramento. Peça-se ao associado o maior sacrifício pecuniário possível, mas para que seja logo convertido em propaganda, educação e movimento. Pecúlio, apenas o indispensável para sustentar os primeiros passos duma ação.

Os sindicatos que têm grossos fundos fazem-se timoratos, inativos e conservadores… com medo de gastar o cobre; e assim os sócios depositam o seu dinheiro, e as vantagens, morais e materiais, não veem.

Contra os patrões, senhores de grandes reservas, de fortes meios de propaganda e de coação, a luta assenta muito mais sobre a energia, a rapidez no ataque e na solidariedade dos companheiros e da população na luta, do que nos míseros vinténs acumulados.

Há casos de derrota operária, apesar dos fortes subsídios de greve; por vezes os operários subsidiados abandonam a luta (?) num momento não desesperado!

O interesse dos patrões está mesmo em que os sindicatos entesourem; isso dá-lhes uma garantia de paz e uma possibilidade de obter legalmente firmada em qualquer texto de lei apresentado por um advogado hábil e tido em conta por um juiz amigo, uma indemnização por perdas e danos, sob pretexto de estorvos à pretendida «liberdade do trabalho», rutura de contrato, excitação à greve, etc. Há disso numerosos exemplos em vários países. Uma das condições que uma associação patronal francesa exigia para reconhecer um sindicato operário e negociar com ele era «que oferecesse responsabilidades e garantias efetivas».

Falamos aqui da caixa de resistência, a única que julgamos indispensável no sindicato, E esse dinheiro deve ser gasto, sem muita demora, na propaganda, nos locais, na agitação. Por vezes é preciso considerar certos casos especiais de solidariedade, para com um companheiro vítima da luta, por exemplo, e sustentar mesmo os primeiros momentos da greve; mas neste último caso mais vale recorrer à solidariedade pecuniária dos trabalhadores de todos, e principalmente à decisão e prontidão dos grevistas…

Valor do cooperativismo

Na cooperativa de consumo unem-se muitas pessoas para comprarem por junto os géneros de consumo, revendendo-os aos sócios. O seu intuito, raras vezes alcançado por completo, é a supressão dos intermediários. É difícil que a cooperativa tenha o poder económico de comprar na origem e em grandes quantidades, estando, portanto, sujeita ao grande comerciante. Demais nem todos os operários ou todas as categorias de operários podem facilmente recorrer à cooperativa: por exemplo, os que sofrem de frequente desocupação, os que não têm salário fixo, os que dependem, pela sua situação incerta e subordinada, do negociante que vende a crédito ou da loja administrada direta ou indiretamente pelo seu patrão industrial.

Na cooperativa de produção unem-se os trabalhadores para produzir as mercadorias e vendê-las diretamente ao público, no intuito de suprimir o ganho do patrão em proveito do produtor e do consumidor. Mas a luta, possível com o pequeno patrão, é dificílima com o grande industrial e as grandes empresas capitalistas, com os trusts, que dispõem da melhor maquinaria. Demais, em regime capitalista, está-se sujeito à sobreprodução, isto é, produção superior às possibilidades de consumir, embora não às necessidades reais, e por consequência, às crises de desocupação e miséria.

Sem contar o espírito de ganância que as cooperativas, quando triunfantes, desenvolvem, é preciso ter em vista que, sendo os capitalistas senhores da terra e dos meios de produção, têm sempre o poder de aniquilar ou reduzir a proporções mínimas as vantagens económicas das cooperativas, sobretudo se da parte dos operários falta a resistência. E esta resistência, como veremos, é muitas vezes amortecida pelo facto de colocarem os operários a sua confiança nas obras do mutualismo e cooperativismo.

Kropotkin cita o facto sucedido a uma pessoa que foi alugar casa nas vizinhanças da cooperativa: «Eu elevo o aluguer da casa, dizia com a maior naturalidade a proprietária, porque há a vantagem compensadora de lhe ficar perto a cooperativa…» Quer isto dizer que os detentores a riqueza social – terra, casas, máquinas, etc. – têm muitos meios de retirar por um modo o que por outro perdem: elevação de preços, baixa de salários, constituição de trusts, açambarcamento de mercadorias, armazenagem de produtos que podem esperar, etc. A própria organização social burguesa, no seu funcionamento normal, com as suas crises de produção e desocupação, deslocação de capitais, migrações, neutraliza até a obra de resistência do proletariado, – o que prova que é uma necessidade inevitável a revolução social, isto é, a expropriação da burguesia em proveito dos grupos livres de produtores, a socialização da terra e dos meios de produção.

O Sindicato de bases múltiplas

Qualquer que seja o valor atribuído ao mutualismo e ao cooperativismo, o ponto principal é que não venham embaraçar e sufocar a resistência. Uma função é tanto mais perfeita quanto menor é o número das funções cumulativas exercidas pelo mesmo órgão. É necessário que essas funções sejam autónomas, que se opere uma divisão de trabalho.

O cooperativismo e o mutualismo, capazes de agrupar um grande número de operários, têm ao menos a vantagem moral de desenvolver o espírito de solidariedade. Nas cooperativas as capacidades administrativas dos operários podem achar expansão, e não faltam anarquistas (como Tcherkesoff)[2] que lhes atribuem valor, mesmo em períodos de crise revolucionária, para a pronta reorganização comunista da produção.

Quanto, porém, aos melhoramentos imediatos dados por esses modos de agrupamento, eles seriam inteiramente nulos e à custa dos trabalhadores, se não fosse a organização de resistência.

O que sobretudo devemos combater é o «sindicato de bases múltiplas», onde a resistência é embrulhada e abafada por instituições de caráter mutualista e cooperativo. A resistência verdadeira, ativa, franca, tem para os revolucionários socialistas o valor essencial de colocar resolutamente o operário em frente do patrão, de aclarar a luta de classes. O organismo que a prepara e que para ela procurar coordenar as forças operárias, deve ser adequado ao seu fim, ter dele consciência e tê-lo constantemente em vista, agindo constantemente. Eis porque os que vão ao sindicato com a mira no subsídio e nas várias caixas (em regra só aparecem para receber o cobre), inconscientes do fim essencial do sindicato, sem espírito de resistência, são um peso morto sempre e por vezes uma oposição à ação de resistência. Para que a organização seja adequada ao seu fim, todo de propaganda e ação, é necessário que os seus membros estejam decididos a ele. Nos momentos de ação, quando a necessidade da resistência se evidencia, e à medida que a propaganda ilumina as consciências, os operários correm a engrossar o núcleo de voluntários, de ativos e conscientes; o número segue a qualidade.

De outro modo pode obter-se uma agremiação numerosa e duradoura – o que não quer dizer forte e ativa; mas essa organização é inadequada para a resistência.

Em suma, a resistência ao patronato é a ação essencial e sem ela qualquer obra de beneficência, mutualismo ou cooperativismo seria toda a cargo do operariado, facilitando mesmo ao patrão a imposição das suas condições e embaraçando a ação do sindicato, quando nele introduzida.

Valor da resistência

Os patrões procuram dar o menos possível em troca da maior soma possível de trabalho, mas encontram um limite extremo na necessidade, na vantagem própria, de que o operário se mantenha de pé e se reproduza. Esse limite é, porém, muito variável de facto: as condições dos diversos proletários variam grandemente do campo para a cidade, de lugar para lugar, de país para país. Certa classe operária não consentiria, a custo de uma revolta, em viver como outra faz tranquilamente. Dizemos certa classe e não certo indivíduo, pois que este é forçado ou a submeter-se porque os outros se submetem, vencendo-o nessa concorrência… às avessas, (assim, nos países de imigração, os trabalhadores vindos das regiões mais miseráveis e habituados a uma vida pior, fazem baixar as condições de trabalho, vendendo-se por preço ínfimo e obrigando os outros ao mesmo) ou a recorrer à emigração, que é, afinal, uma forma de resistência, mesmo coletiva, quando faz rarear a oferta de braços no lugar de onde se emigra.

Na lei de bronze dos salários, segundo a qual as condições operárias tendem a descer ao limite em que o salariado apenas pode vegetar e reproduzir-se, intervém como elemento a vontade, a resistência coordenada dos trabalhadores. A resignação, a passividade, o hábito da miséria faz baixar a vida a tal grau de miséria abjeta e degradante que parece mesmo desmentir a lei de bronze, não sendo então possível uma vida mesmo animal nem uma união sexual, a reprodução. Por outro lado, a resistência, tanto mais eficaz quanto mais consciente e enérgica, faz subir o nível da vida proletária a um certo grau de bem-estar. Até ao ponto em que o patrão já não teria lucro, isto é, deixaria de ser patrão, as condições operárias oscilam, proporcionalmente à resistência solidária dos salariados, se todas as outras circunstâncias que influem nessa oscilação forem postas de lado. Como atrás ficou dito, há circunstâncias próprias do sistema capitalista, que destroem rapidamente os frutos dos esforços operários.

Mas, neste caso, se o operariado se habituou a certo grau de bem-estar, sem o qual já não pode passar, se se foi exercitando na luta, se, graças aos fatos e à educação revolucionária, compreendeu as causas profundas do mal-estar, ei-lo arrastado pela mudança brusca à ação revolucionária.

O sentimento de bem-estar e o espírito de revolta são dados pela ação contínua e solidária, que prepara e produz o facto. Aqui ressalta a razão principal do nosso interesse pela organização e ação sindicalistas: o operário enfrenta o patrão, aprende a considera-lo como parasita, educa-se no antagonismo de classe; discute com os seus os interesses profissionais, adquire o hábito da solidariedade, intervém na vida social.

Graças à luta e à propaganda que essa luta facilita e fecunda, o trabalhador penetra cada vez mais profundamente na compreensão da origem do mal e prepara-se moral e materialmente para o que é a conclusão lógica do movimento sindicalista operário: a expropriação revolucionária da terra e de todos os meios de produção.

A arbitragem

Para concluir, falemos agora da arbitragem nos conflitos do trabalho com o capital.

A arbitragem supõe litigantes de força igual normalmente, supõe o consentimento das partes, a absoluta independência e imparcialidade dos árbitros, a existência de direitos primários reconhecidos de parte a parte. Ora, nenhuma destas condições se dá entre patrão e salariado; o operário não pode consentir que o seu direito à existência dependa duma arbitragem, muito suscetível de ser comprada, ou torcida ou desprezada pelos seus empregadores, não pode reconhecer o direito de o explorarem. Entre as duas forças há uma luta que a intervenção suspeita da lei do salariado. A arbitragem obrigatória, como a «lei sobre os conflitos coletivos» da Suíça, é um laço mais para manietar os trabalhadores na sua legítima e necessária defesa contra a exploração patronal. Não; há só um meio de fazer terminar a luta, de realizar a paz social, a harmonia entre o capital e o trabalho: é coloca-los nas mesmas mãos, as o produtor-consumidor, é abolir as duas classes em guerra, burguesa e proletária, e fundi-las numa só, pela posse em comum dos meios de produção. Até lá, a arbitragem é uma burla infame, que é preciso combater a todo o transe.


[1] Neno refere-se à Industrial Workers of the World (IWW).
[2] Anarquista-comunista que lutou pela autodeterminação da Geórgia. Tem como principal obra “Pages of Social History” (disponível na libcom.org) em que crítica as raízes utópicas do dito “socialismo científico”. Fundou a Cruz Vermelha Anarquista e assinou o Manifesto dos Dezasseis de Kropotkin.
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Feminismo, Classe e Anarquismo

Artigo de Deirdre Hogan, feminista anarquista irlandesa, traduzido de Anarkismo.net


A relação entre a sociedade de classes e o capitalismo

Uma característica definidora da sociedade capitalista é que ela está amplamente divida em duas classes principais: a classe capitalista (burguesia), composta por grandes proprietários de negócios, e a classe trabalhadora (proletariado), composta mais ou menos por todas as outras pessoas – a grande maioria que precisa de trabalhar por um salário. Existem, é claro, muitas áreas cinzentas dentro desta definição da sociedade de classes, e a própria classe trabalhadora não é composta por um grupo homogéneo de pessoas, já que inclui, por exemplo, trabalhadores não qualificados bem como a maioria do que chamamos de classe média, e portanto pode haver diferenças muito significativas em termos de rendimentos e oportunidades para diferentes setores desta classe trabalhadora assim amplamente definida.

“Classe média” é um termo problemático visto que, embora de uso frequente, raramente é claro a quem exatamente se refere. Habitualmente, “classe média” refere-se a trabalhadores como os profissionais liberais, a pequenos empresários e a cargos de gestão inferiores ou intermédios. Seja como for, estas camadas intermédias não são realmente uma classe independente, na medida em que não independem do processo de exploração e acumulação de capital que é o capitalismo. Elas geralmente estão nas margens de uma das duas classes fundamentais, capitalistas e trabalhadores.[1]

O importante quando entendemos a sociedade como dividida em duas classes fundamentais é perceber que a relação económica entre as ditas classes, os grandes empresários e as pessoas que para eles trabalham, é baseada na exploração, e portanto estas duas classes têm interesses materiais fundamentalmente opostos.

O capitalismo e os negócios são, por natureza, orientados para a obtenção de lucro. O trabalho feito por um funcionário no seu emprego gera riqueza. Alguma desta riqueza é dada ao funcionário no seu pacote salarial, sendo o restante retido pelo patrão, somando aos seus lucros (se o funcionário não fosse lucrativo, não estaria empregado). Deste modo, o empresário explora o funcionário e acumula capital. É do interesse do empresário maximizar os lucros e manter baixos os custos como pagamento de salários; é do interesse do funcionário maximizar o seu ordenado e as condições laborais. Este conflito de interesses, e a exploração de uma classe de pessoas por outra classe minoritária, é inerente à sociedade capitalista. Os anarquistas visam, em última instância, abolir o sistema de classes capitalista e criar uma sociedade sem classes.

A relação entre sexismo e capitalismo

O sexismo é uma fonte de injustiça que difere em alguns aspetos da exploração de classe do tipo acima abordado. A maioria das mulheres vive e trabalha com homens durante, pelo menos, boa parte das suas vidas; mantêm relações estreitas com vários homens – o pai, o irmão, o companheiro, o marido ou amigos. Mulheres e homens não têm interesses diretamente opostos; não pretendemos abolir os sexos mas sim a hierarquia de poder existente entre os sexos e criar uma sociedade onde mulheres e homens possam viver juntos livremente e como iguais.

A sociedade capitalista depende da exploração de classe. No entanto, não depende do sexismo e, em teoria, poderia acomodar em larga medida um tratamento similar para mulheres e homens. Isto é evidente se olharmos para o que a luta pela libertação das mulheres tem conseguido em muitas sociedades ao longo dos últimos, digamos, 100 anos, nos quais houve melhorias radicais na situação da mulher e nos pressupostos subjacentes sobre quais os papéis naturais e adequados às mulheres. O capitalismo, entretanto, adapotou-se às mudanças no papel e estatuto da mulher na sociedade.

Por conseguinte, o fim do sexismo não conduzirá necessariamente ao fim do capitalismo. Do mesmo modo, o sexismo também poderá permanecer após a abolição do capitalismo e das classes. O sexismo é possivelmente a forma mais antiga de opressão, e não antecede apenas o capitalismo; há evidências da existência de sexismo em formas anteriores de sociedade de classes.[2] Ao passo que as sociedades desenvolveram a natureza exata da opressão das mulheres, a forma particular que esta toma tem mudado. Sob o capitalismo a opressão das mulheres tem um caráter particular, sendo que o capital aproveitou esta opressão histórica para maximizar lucros.

Mas quão realista é o fim da opressão das mulheres no capitalismo? As mulheres enquanto sexo são oprimidas de muitas maneiras na sociedade atual – economicamente, ideologicamente, fisicamente, e assim por diante – e é provável que o prosseguimento da luta feminista leverá a novas melhorias na condição da mulher. Seja como for, e embora seja possível antever vários aspetos do sexismo esboroando-se como consequência da luta, certas características do capitalismo tornam altamente improvável a completa igualdade económica entre mulheres e homens. Isto porque o capitalismo tem por base a necessidade de maximizar lucros, e num sistema assim as mulheres estão em natural desvantagem.

Na sociedade capitalista, a capacidade de dar à luz é um encargo. A condição biológica das mulheres implica que (se tiverem filhos) elas terão de passar pelo menos algum tempo ausentes de qualquer trabalho remunerado. Essa mesma função biológica também as torna responsáveis em última instância por qualquer criança a seu cargo. Em consequência, a licença de maternidade paga, o subsídio monoparental, a licença para cuidar de crianças doentes, creche e estabelecimentos de acolhimento de crianças gratuitos, etc., serão sempre particularmente importantes para as mulheres. Por esta razão, no capitalismo as mulheres são economicamente mais vulneráveis que os homens: os ataques a conquistas como creches gratuitas, subsídio de maternidade e outros sempre afetarão desproporcionalmente mais as mulheres do que os homens. Além do mais, sem uma plena igualdade económica é difícil ver o fim das relações desiguais de poder entre homens e mulheres e a ideologia associada do sexismo. Assim, ainda que possamos admitir que o capitalismo poderia acomodar a igualdade das mulheres em relação aos homens, a realidade é que a concretização plena desta igualdade é muito improvável no capitalismo. Isto simplesmente porque existe uma desvantagem económica vinculada à biologia das mulheres, que torna a sociedade capitalista baseada no lucro inerentemente enviesada em desfavor das mulheres.

A luta pela emancipação das mulheres nos movimentos de classe trabalhadora

Um dos melhores exemplos de como a luta pela mudança pode trazer mudanças reais e duradouras na sociedade são as grandes melhorias no estatuto, nos direitos e na qualidade de vida das mulheres que a luta feminista alcançou em muitos países ao redor do mundo. Sem esta luta (a que chamarei feminismo, embora nem toda gente que luta contra a subordinação das mulheres se tivesse identificado como feminista), nós as mulheres claramente não teríamos tido os enormes ganhos que tivemos.

Historicamente, a luta pela emancipação das mulheres foi evidente dentro do anarquismo e de outros movimentos socialistas. Contudo, estes movimentos com um todo têm tido uma relação um tanto ambígua com a libertação das mulheres e com a luta feminista mais ampla.

Embora tenha sido sempre central ao anarquismo uma ênfase na abolição de todas as hierarquias de poder, o anarquismo tem as suas raízes na luta de classes, na luta pelo derrube do capitalismo, com o objetivo definido de criar uma sociedade sem classes. Como a opressão das mulheres não está tão intimamente amarrada ao capitalismo como está a luta de classes, a libertação das mulheres tem sido historicamente vista, e em grande medida cotinua a ser vista, como um objetivo secundário à criação de uma sociedade sem classes, não tão importante nem tão fundamental como a luta de classes.

Mas para quem é que o feminismo não é importante? Certamente, para muitas mulheres em movimentos socialistas era vital a ideia de que uma profunda transformação nas relações de poder entre mulheres e homens fazia parte do socialismo. Contudo, tendia a haver mais homens que mulheres nos círculos socialistas e os homens desempenhavam um papel dominante. As reivindicações das mulheres eram marginalizadas por causa da primazia da classe e também porque, se as questões que afetavam os operários também afetavam as operárias de modo semelhante, o mesmo não era verdade para as questões particulares à opressão das mulheres enquanto sexo. A igualdade social e económica das mulheres era por vezes vista como em conflito com os interesses materiais e o conforto dos homens. A igualdade das mulheres exigia profundas mudanças na divisão do trabalho tanto em casa como no emprego assim como em todo o sistema social de autoridade masculina. Alcançar a igualdade das mulheres também implicaria uma reavaliação da auto-identidade, em que a “identidade masculina” não poderia mais depender de ser vista como mais forte ou mais capaz que as mulheres.

As mulheres tendiam a fazer a conexão entre emancipação pessoal e emancipação política, na esperança de que o socialismo geraria novas mulheres e novos homens pela democratização de todos os aspetos das relações humanas. Porém elas achavam muito difícil, por exemplo, convencer os seus camaradas de que a divisão desigual do trabalho em casa era uma questão política importante. Nas palavras de Hannah Mitchell, ativa enquanto socialista e feminista por volta do início do século XX em Inglaterra, sobre o seu duplo turno de trabalho dentro e fora de casa:

“Mesmo o meu domingo de lazer tinha acabado, pois cedo descobri que muito da conversa socialista sobre liberdade era apenas conversa e estes jovens socialistas estavam a contar com jantares de domingo e enormes chás com bolos caseiros, carnes empanadas e tortas exatamente como os seus colegas reacionários.” [3]

As mulheres anarquistas em Espanha, na altura da revolução social de 1936, tiveram queixas semelhantes, achando que a igualdade entre mulheres e homens não se deu satisfatoriamente nas relações pessoais íntimas. Martha Ackelsberg no seu livro Mulheres Livres da Espanha observa que, embora a igualdade entre mulheres e homens tivesse sido adotada oficialmente pelo movimento anarquista espanhol já em 1872:

“Praticamente todas as minhas informantes lamentaram que, não importa o quão militantes eram até mesmo os mais comprometidos anarquistas nas ruas, eles esperavam ser ‘chefes’ nas suas casas – uma queixa ecoada em muitos artigos escritos em jornais e revistas durante esse período.”

O sexismo também ocorria na esfera pública, onde, por exemplo, as mulheres militantes por vezes achavam que não eram tratadas com seriedade e respeito pelos seus camaradas masculinos. As mulheres também enfrentaram problemas na sua luta por igualdade dentro do movimento sindical nos séculos XIX e XX em que a situação desigual entre homens e mulheres no emprego remunerado era uma questão constrangedora. Os homens nos sindicatos argumentavam que as mulheres baixavam os salários dos trabalhadores organizados e alguns acreditavam que a solução era excluir inteiramente as mulheres do sindicato e aumentar o salário masculino para que os homens pudessem sustentar as suas famílias. Em meados do século XIX na Grã-Bretanha um alfaiate resumiu o efeito do trabalho feminino da seguinte maneira:

“Quando comecei a trabalhar neste ramo [fabrico de coletes], havia muito poucas mulheres nele empregadas. Deram a elas alguns coletes brancos na ideia de que as mulheres os tornariam mais limpos do que os homens …Mas desde o aumento dos sistemas a vapor, amos e capatazes têm procurado por toda a parte mãos que façam o trabalho por menos que o normal.  Daí a esposa fez-se para competir com o marido, e a filha com a esposa…Se o homem não reduzir o preço do seu trabalho como a mulher, deve continuar desempregado”. [4]

A política de excluir as mulheres de certos sindicatos era frequentemente determinada pela concorrência que abatia os salários e não por ideologia sexista, embora também a ideologia tivesse um papel a desempenhar. Na indústria de tabaco nos inícios do século XX em Tampa (EUA), por exemplo, um sindicato anarco-sindicalista, La Resistência, composto maioritariamente por emigrantes cubanos, procurou organizar todos os trabalhadores em toda a cidade. Mais de um quarto da sua filiação era composta por mulheres que trituravam o tabaco. Esta organização sindicalista foi denunciada como sendo anti-masculina e anti-americana por outro sindicato, o Cigar Makers’ Industrial Union, que seguia estratégias excludentes e “com muita relutância organizava mulheres trabalhadoras numa secção separada e secundária do sindicato”. [5]

A força da libertação das mulheres tem sido o feminismo

Está geralmente bem documentado que a luta pela emancipação das mulheres nem sempre foi apoiada e que historicamente as mulheres têm-se deparado com o sexismo dentro das organizações de luta de classes. Os ganhos inquestionáveis que tem havido em liberdade para as mulheres são devidos àquelas mulheres e homens, tanto dentro como fora das organizações de classe, que enfrentaram o sexismo e lutaram por melhorias na condição da mulher. Foi o movimento feminista em toda a sua variedade (classe média, operário, socialista, anarquista…) que desbravou o caminho na libertação das mulheres e não os movimentos focados na luta de classe. Realço este ponto pois, embora hoje o movimento anarquista como um todo apoie o fim da opressão das mulheres, uma desconfiança do feminismo permanece, com anarquistas e outros socialistas por vezes distanciando-se do feminismo, porquanto este muitas vezes carece de uma análise de classe. Ainda assim, é a esse mesmo feminismo que temos de agradecer pelos ganhos bastante reais que nós mulheres tivemos.

Quão relevante é a classe quando se trata de sexismo?

Quais são as abordagens comuns ao feminismo dos anarquistas classistas hoje? No extremo da reação contra o feminismo está a perspetiva do completo reducionismo de classe: só importam as questões de classe. Este ponto de vista dogmático tende a ver o feminismo como fator de divisão [seguramente o sexismo é mais divisivo que o feminismo…?] e uma distração da luta de classes, e argumenta que qualquer sexismo que exista desaparecerá automaticamente com fim do capitalismo e das classes.

Contudo, uma abordagem anarquista mais comum é a aceitação de que o sexismo existe, não se extinguirá automaticamente com o fim do capitalismo e precisa de ser combatido no aqui e agora. Todavia, como já foi mencionado, os anarquistas muitas vezes esforçam-se por se distanciar do feminismo “mainstream” por causa da sua falta de análise de classe. Como alternativa, ressalta-se que a experiência do sexismo é diferenciada por classe e que, portanto, a opressão das mulheres é uma questão de classe. É seguramente verdade que a riqueza permite mitigar os efeitos do sexismo: é menos difícil, por exemplo, fazer um aborto se não tivermos que nos preocupar com arranjar dinheiro para uma viagem ao estrangeiro; questões relacionadas com o trabalho doméstico e cuidar de crianças tornam-se menos preocupantes quando se pode pagar a alguém para ajudar. Também temos prioridades diferentes consoante nosso contexto socio-económico.

Contudo, ao enfatizar constantemente que a experiência do sexismo é diferenciada por classes, os anarquistas podem dar a impressão de encobrir ou ignorar outra verdade: que a experiência de classe é diferenciada por sexo. O problema, a injustiça, do sexismo é que há relações desiguais entre mulheres e homens dentro da classe trabalhadora e, na verdade, em toda a sociedade. As mulheres estão sempre em desvantagem em relação aos homens da sua respetiva classe.

Em maior ou menor grau, o sexismo afeta mulheres de todas as classes; porém uma análise feminista que não enfatize a classe é alvo habitual de críticas. Mas é a classe relevante para todos os aspetos do sexismo? Como é a classe relevante para a violência sexual, por exemplo? A classe certamente não é sempre o ponto mais importante em qualquer caso. Por vezes há uma insistência em juntar uma análise de classe a todas as posições feministas, como se isso fosse necessário para dar credibilidade ao feminismo, para validá-lo como uma luta digna para anarquistas revolucionários. Mas essa postura perde de vista o ponto essencial, que é, sem dúvida, o de que somos contra o sexismo, seja qual for o seu disfarce, sejam quem forem as suas vítimas…?

Se uma pessoa é espancada até à morte num ataque racista, é necessário saber a classe da vítima para expressar indignação? Deixamos de nos preocupar com o racismo quando uma vítima é um membro da classe dominante? Da mesma forma, se alguém é discriminado no trabalho com base na raça, no sexo ou na sexualidade, quer seja um varredor de rua ou um professor universitário, não é errado em ambos os casos e pelas mesmas razões? Seguramente, a luta pela libertação das mulheres por si só vale a pena assim como, em geral, vale a pena lutar contra a opressão e a injustiça, independentemente da classe dos oprimidos.

Homens e mulheres do mundo uni-vos contra o sexismo?

Dado que uma das coisas que as mulheres têm em comum transversalmente às classes e às culturas é a sua opressão, devemos então enquanto sexo feminino pedir às mulheres (e aos homens) do mundo que se unam contra o sexismo? Ou há interesses de classe opostos que tornam essa estratégia fútil?

Conflitos de interesses podem certamente surgir entre mulheres da classe trabalhadora e mulheres ricas da classe média ou classe dominante. Por exemplo, numa conferência feminista de 1900 em França as delegadas dividiram-se na questão de um salário mínimo para empregadas domésticas, que poderia prejudicar os bolsos das que podiam contratar empregadas. Hoje, pedidos de licença-paternidade ou crèche gratuita encontrarão oposição de empresários que não querem ver cortes nos seus lucros. O feminismo nem sempre é bom para o lucro a curto prazo. Lutas por igualdade económica em relação aos homens na sociedade capitalista envolvem necessariamente lutas contínuas por concessões — essencialmente luta de classes.

Assim, interesses de classe divergentes podem por vezes colocar obstáculos à unidade feminista a um nível prático. Contudo, é muito mais importante para anarquistas enfatizar os laços com o amplo movimento feminista do que enfatizar as diferenças. Afinal, a classe dominante é uma minoria, e a larga maioria das mulheres na sociedade partilha um interesse comum em obter igualdade económica com os homens. Além disso, muitas questões feministas não são afetadas por tais conflitos de interesses de classe e dizem respeito a todas as mulheres em grau variado. Quando se trata de direitos reprodutivos, por exemplo, anarquistas na Irlanda estiveram e continuam envolvidas em grupos pró-escolha ao lado de partidos capitalistas sem que isso comprometa a sua linha política pois, quando se trata de combater o sexismo que nega à mulher o controlo sobre o seu próprio corpo, essa é a tática mais adequada. Por fim, vale a pena também notar que habitualmente a rejeição do “feminismo de classe média” vem dos mesmos anarquistas/socialistas que adotam a definição marxista de classe (dada no início deste artigo), a qual colocaria a maioria das pessoas de classe média bem nas fileiras da ampla classe trabalhadora.

Reformas e não reformismo

Existem duas abordagens que podemos tomar para o feminismo: podemos distanciar-nos de outras feministas focando-nos em criticar o feminismo reformista ou podemos apoiar totalmente a luta por reformas feministas enquanto sempre insistimos que queremos mais!! Isto é importante especialmente se quisermos que o anarquismo seja mais atrativo para as mulheres (uma sondagem recente do Irish Times mostra que o feminismo é importante para mais de 50% das mulheres irlandesas). Na visão comunista-anarquista da sociedade futura com o seu princípio orientador, a cada um de acordo com as necessidade, de cada um de acordo com as capacidades, não há nenhuma propensão institucional contra as mulheres como há no capitalismo. Assim como os benefícios para mulheres e homens, o anarquismo tem muito a oferecer às mulheres em particular, em termos de liberdade sexual, económica e pessoal que se aprofunda e oferece mais do que qualquer igualdade precária que possa ser alcançada sob o capitalismo.

* * * * *


[1] Esta descrição da classe média é emprestada de Wayne Price. Ver «Porquê a classe trabalhadora?» em anarkismo.net www.anarkismo.net

[2] Ver por exemplo os artigos em «Toward an Anthropology of Women» por Rayna R. Reiter.

[3] Citação de Hannah Mitchell tirada de Women in Movement (p. 135) por Sheila Rowbotham.

[4] citação tirada de Women and the Politics of Class (p. 24) por Johanna Brenner.

[5] ibid, p. 93

Seitas e Sectarismo – Parte I

Este texto, do marxista “heterodoxo” Scott Jay, foi originalmente publicado em libcom.org em inglês. Embora esta análise do sectarismo político se concentre em exemplos leninistas e trotskistas, de que o próprio autor tem experiência, trata-se de um fenómeno geral e não de todo desconhecido em correntes anarquistas, autonomistas ou quaisquer outras. Porque nenhum grupo ou organização radical está livre de se encontrar a braços com este terrível problema, tratam-se de reflexões úteis e necessária a todos que lutam por uma transformação radical da sociedade.

Segue-se a primeira de três partes da nossa tradução do texto. As duas restantes serão publicadas em breve.


trotchart2Seitas religiosas e seitas revolucionárias têm muito mais em comum do que geralmente gostariam de admitir. As suas ideias podem ser completamente diferentes, mas a sua obsessão por ideias produz organizações com os mesmos comportamentos.”

Parte I

O termo “sectário”, como muito do jargão da esquerda, é de uso tão comum que as pessoas normalmente nem se dão ao trabalho de refletir sobre o que ele significa.

Tecnicamente, um sectário é um membro duma seita, ou pelo menos alguém que age como tal. A maioria das pessoas pensa que uma seita é algo muito próximo de um culto, ainda que menos mau. Uma observação comum é que os membros das seitas podem agir como “idólatras” ou como zombies, o que pode ter alguma verdade, mas não nos diz muita coisa. O verdadeiro problema é, porque é que eles “agem como zombies?” O artigo anterior desta série procurou lidar com este problema, olhando para como a vida social interna das organizações leninistas leva a que as pessoas escondam as suas discordâncias por medo de shunning e outras represálias. O shunning é muito comum entre seitas religiosas e bastante conhecido por ocorrer, por exemplo, entre os Amish, um grupo que geralmente se considera ser uma seita.

A maioria das pessoas entenderão que uma seita é um pequeno agrupamento ou fação religiosa que se encontra algures entre a religião convencional e o culto. Em termos informais, uma seita aspira a ser uma religião e é menos doentia do que um culto.

Bryan Wilson, um sociólogo das seitas religiosas, descreve-as da seguinte maneira:

“Tipicamente, uma seita pode ser identificada pelas seguintes características: ela é uma associação voluntária; a filiação nelas é por provas, perante as autoridades da seita, de algum mérito pessoal reivindicado – como o conhecimento da doutrina, a afirmação de uma experiência de conversão, ou a recomendação de membros em boa posição; a exclusividade é enfatizada, e a expulsão exercida contra aqueles que infrinjam preceitos doutrinais, morais ou organizacionais; na sua anticoncepção ela é como uma eleita, um remanescente reunido, possuindo iluminação especial; a perfeição pessoal é o padrão aspiracional que se espera, sejam quais forem os termos em que isto se avalia; ela aceita, pelo menos como um ideal, o sacerdócio de todos os crentes; existe um nível alto de participação leiga; existe oportunidade para o membro expressar espontaneamente o seu compromisso; a seita é hostil, ou indiferente, à sociedade secular e ao estado…” (Wilson 1959)

É claro que destas características nem todas são necessariamente negativas, como a primeira de todas e a última de todas, por exemplo. Seja como for, olhando para esta lista é muito claro que a maioria dos grupos leninistas podem ser descritos como tendo as características sectárias segundo Wilson.

Mas o que é uma seita? Precisamos de uma melhor definição para além de uma lista de características. Costuma haver um pouco de confusão sobre o que significa ser sectário já que o termo é mais frequentemente definido por membros de seitas que, deliberada ou inconscientemente, definem o termo de molde a deixar a sua seita fora da mira da definição. Não se pode dizer simplesmente que uma seita é qualquer organização revolucionária pequena, ou que qualquer organização revolucionária pequena tenha que ser uma seita. O problema não é apenas ser pequena, pois se assim fosse nunca haveria nenhuma grande organização revolucionária. Isto porque, assim que uma organização se torna uma seita, é muito difícil abandonar o padrão sectário, já que somente aqueles dispostos a aceitar a definição do mundo apresentada pela seita irão juntar-se. Trata-se de um número deveras pequeno.

Seitas religiosas e seitas políticas

Devemos olhar primeiro para a definição de seitas religiosas, já que alguém em algum momento deve ter percebido que pequenos grupos revolucionários são semelhantes a elas. Uma fonte útil é Peter L. Berger, o qual descreve várias teorias da tipologia igreja versus seita, no seu artigo “The Sociological Study of Sectarianism.” (Berger 1954)

Ele começa por examinar a descrição de Max Weber, segundo a qual uma igreja é uma seita que se tornou “rotinizada”, observando que “Igreja e seita podem distinguir-se [na análise de Weber] pelo simples facto de que as pessoas nascem numa igreja, mas juntam-se uma seita. A seita morre com a geração que primeiro a constituiu.” Isto explica pouco sobre comportamento sectário, seja religioso ou político. Se a visão de Weber estivesse correta, seria difícil explicar o porquê das batalhas entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte serem descritas como “sectárias,” ou o que entender de uma organização como o Socialist Workers Party (UK) que tem existido sob várias formas por mais de meio século.

Berger dá-nos a sua própria definição, a qual é demasiado religiosa para os nossos propósitos, mas aponta na direção certa:

“Deve-se salientar novamente que o princípio orientador da definição deve ser o significado interno dos fenómenos religiosos em questão, e não certos acasos históricos da sua estrutura social. A seita, portanto, pode ser definida como um agrupamento religioso com base na crença de que o espírito está imediatamente presente. E a igreja, por outro lado, pode ser definida como um agrupamento religioso com base na crença de que o espírito está remoto.” (Berger 1954)

Converter do religioso para o político envolve um pouco de extrapolação, mas se substituirmos “a presença do ‘espírito’” por “a linha política correta” poderemos então ter uma ideia de como grupos de esquerda podem exibir o mesmo comportamento das seitas religiosas. Em ambos os casos, há uma verdade pura que só os devidamente ungidos podem possuir. Se isto é definidor de uma seita religiosa, certamente indica-nos a direção certa para entendermos a seita política.

Tendo em mente uma comparação dos sectarismos religioso e político, podemos olhar para a descrição da seita política de Marx e Engels no Manifesto Comunista, onde se lê que os comunistas “não estabelecem nenhuns princípios sectários seus, pelos quais formatar e moldar o movimento proletário.” (Marx e Engels 1848) Marx elaborou sobre isto na sua carta a Schweitzer em que escreve, “A seita encontra a justificação para a sua existência e o seu ‘ponto de honra’ – não no que ela tem em comum com o movimento de classe, mas no shibboleth particular que a distingue dele.” (Marx 1868)

Castoriadis colocou isto em termos ainda mais próximos da origem religiosa da palavra, concluindo com o papel nocivo que as seitas têm na luta de classes:

“Uma seita é um grupo que eleva a um valor absoluto um único lado, aspeto ou fase do movimento do qual é proveniente, faz disso a pedra-de-toque da verdade da sua doutrina (ou da verdade, ponto final), subordina tudo o mais a essa “verdade” e, para a ela permanecer “fiel”, está disposta a separar-se totalmente do mundo real e daí em diante viver num mundo só seu. A invocação do marxismo pelas seitas permite-lhes conceberem-se e apresentarem-se como algo diferente do que realmente são, nomeadamente, como o futuro partido revolucionário desse mesmo proletariado no qual nunca conseguem implantar-se.” (Castoriadis 1966)

Essa “verdade” pode ser uma análise específica da União Soviética ou simplesmente a importância fundamental da própria seita, não obstante toda a evidência empírica do contrário. Hal Draper elaborou sobre este ponto:

“Uma seita apresenta-se como a expressão do movimento socialista, embora seja uma organização de membership cuja fronteira é definida mais ou menos rigidamente pelos pontos do seu programa político e não pela sua relação com a luta social.” (Draper 1973)

Vamos insistir neste ponto pois ele é muito mal compreendido. “Sectário” muitas vezes quer dizer “alguém de quem não gosto,” ou simplesmente “alguém que não gosta de mim”. Com demasiada frequência, “sectarismo” é uma acusação que alguém faz contra quem lhe dirige críticas, como se a crítica fosse inerentemente sectária. Na verdade, essa acusação é muitas vezes a fonte do sectarismo, e não a crítica originária. Ou seja, é perfeitamente razoável, e na verdade necessário, que camaradas em luta observem e critiquem a militância uns dos outros no sentido de lidar com problemas reais, mas é a seita que não pode suportar ser criticada. Eles acusarão os outros de “sectarismo” de maneira a encobrir o seu próprio sectarismo. Eles detêm a única verdade e qualquer questionamento que venha de fora dos poucos selecionados é inaceitável. Chamar ao crítico de sectário é a melhor cortina de fumo para encobrir o verdadeiro sectarismo.

Mais uma vez, isto é perfeitamente consistente com sectarismo religioso:

“Os correlatos comportamentais do compromisso ideológico [do membro da seita] também servem para configurá-lo e mantê-lo apartado do “mundo”. . . A seita não apenas disciplina ou expulsa membros que perfilhem opiniões heréticas, ou cometam algum delito moral, como trata tais desvios como uma traição à causa, a menos que sejam seguidos de confissão de culpa e pedido de perdão.” (Wilson 1959)

Uma definição de seita é, portanto:

um grupo que se considera portador da verdade eterna, e que se define não só contra o mundo em geral, mas também contra outros semelhantes portadores da verdade que ameacem o status da seita.

Disto decorrem os comportamentos sectários, especificamente aqueles descritos por Wilson. Todavia, o problema não é simplesmente os comportamentos, já que eles são meramente um sintoma do sectarismo. Tentar melhorar estes comportamentos sem mudar os pressupostos e a estrutura da forma-seita de pouco serve, apenas a tornará em “aquele melhor tipo de seita que acredita que não é sectária”, tal como Draper descreve. (Draper 1973)

Idealismo e sectarismo

Uma descrição do sectarismo é-nos dada por Ernest Mandel, o mais proeminente intelectual trotskista europeu desde o fim da 2ª Guerra Mundial até à queda do Muro de Berlim. Num dos primeiros artigos que escreveu sobre oportunismo e sectarismo, ele fala extensamente sobre vários debates e discute “o carácter correto destes argumentos quando usados por um partido bolchevique, isto é, no quadro de uma orientação política correta e um programa de ação correto.” Ele discute a importância dos slogans apropriados e chega mesmo a discutir o seu “carácter algébrico.” O artigo de Mandel está carregado de idealismo – ele assume a importância primordial das ideias, em lugar da realidade material – e é inteiramente sectário, não por criticar oportunistas e sectários, muitos dos quais merecem a crítica, mas pelo seu fetichismo do programa correto leninista. O sectário celebra a sua perfeição contra o resto do mundo, e esta celebração mostra justamente quão próximos estão sectarismo e idealismo.

Para uma organização revolucionária, que por definição se contrapõe à sociedade em geral enquanto visa transformá-la radicalmente, abraçar o idealismo é tomar um caminho que conduz diretamente ao sectarismo. Focar em um programa ou teoria cuja defesa é uma tarefa central e é uma ferramenta para recrutar, ao invés de desenvolver uma estratégia imediata de luta defensiva e ofensiva, não tem outro rumo senão aquele que conduz à seita. Se as suas ideias estão certas ou erradas é irrelevante. É a própria obsessão com o certo e o errado das ideias que constitui a marca da seita.

Os membros das organizações leninistas aderem com base nas ideias – um conjunto muito específico de ideias, na maioria dos casos – e não com base na coragem, determinação, capacidade de liderança, ou o seu papel no movimento social. Alguns aderem por estas últimas razões, mas não a grande maioria. Isto significa que a filiação não é baseada em compromisso real com a luta de classes ou a capacidade de a levar por diante, e a liderança numa organização leninista habitualmente também não é fundamentada na luta de classes.

A experiência da luta de classes transforma as pessoas. Os leninistas entendem isto melhor do que muitos outros radicais, mas o problema é que os leninistas acreditam que esta transformação na consciência simplesmente conduzirá os transformados em direção ao leninismo. Não há razão para que tenha de ser assim. Os trabalhadores cujas ideias tenham sido transformadas pela luta não chegam à conclusão de que precisam de convencer mais gente a ser leninista, chegam sim à conclusão de que precisam de comprometer as suas vidas a uma prática organizativa que possa afrontar o capitalismo. Esta diferença escapa constantemente aos sectários.

Os leninistas sempre partiram do pressuposto de que estão isentos dessa mesma transformação na consciência. Novamente, como pode isso ser verdade para pessoas cuja relação com a luta de classes é meramente baseada nas ideias que têm sobre isso? As suas próprias teorias sobre como a luta de classe altera consciências contestam tal visão, coisa que eles poderiam ver com bons olhos se não se tivessem já autodefinido como os iluminados detentores da verdade no estilo típico da seita. E pior ainda, as estruturas de liderança estanques das organizações leninistas minimizam quaisquer desafios à liderança e escondem as discordâncias entre eles. Assim, quando os membros aprendem na luta lições diferentes das da sua liderança – e como seria possível isso não ocorrer? – as estruturas minimizam o impacto da luta de classes na liderança da organização, ao invés de permitirem que novas ideias sejam debatidas e eventualmente abraçadas. Isto leva ao conservatismo, o que é totalmente desadequado para trabalhadores revoltados e radicalizados que toda a vida ouviram pessoas “importantes” dizerem-lhes que estão errados.

Os leninistas, invariavelmente, sempre começaram as suas organizações como seitas. Os leninistas que contestam isto deviam olhar para trás e ver como foi de facto a fundação da sua organização, de que cisão resultou e porquê. Se eles fossem a perguntar inclusive aos seus mais respeitados camaradas da “velha guarda” sobre as origens das suas organizações, provavelmente receberiam um raspanete de ira sectária. Eles optaram sempre por distinguir-se radicalmente dos antigos camaradas dos quais cindiram bem como de toda a restante esquerda leninista, se não por nenhuma outra razão, pelo menos pelo facto de que o recrutamento requer explicar aos potenciais recrutas porque é que eles são tão diferentes. Isto faz sentido (para o punhado de iluminados, de qualquer maneira) quando os membros destes grupos são só uma dúzia ou algo assim. Mas depois passa uma década, eles já têm uma centena de membros e estão de súbdito em posição de formar uma organização mais saudável, menos semelhante à seita. O problema, no entanto, é que esta primeira colheita de membros foi recrutada para uma seita e os líderes mantiveram a sua posição usando-se de métodos típicos de seita. Qualquer passo dado no sentido de abandonar o modelo da seita ameaça a) alienar uma grande quantidade de membros que podem ir embora e b) ameaça a posição dos líderes, alguns dos quais podem já estar muito acostumados ao seu posto full-time ao longo dos anos.

A liderança e o conjunto dos membros ficam então presos num abraço de morte, que se estende aos próprios líderes, alguns dos quais desejam permanecer uma seita enquanto outros querem romper com ela para se tornarem um partido de massas. Deixar que estas divergências virem à tona é uma ameaça para toda a operação, já que alguns podem perder as suas posições por estarem no lado perdedor do debate “partido de massas versus seita”, ao passo que os vencedores terão a preocupação de que os esqueletos no armário sejam desencantados pelos perdedores. O ponto é, uma vez tomada a via da seita é extremamente difícil dela sair.

O que nos deixa com a questão: qual a diferença entre um culto e uma seita? Esta pergunta não tem uma resposta clara. Alguns definem essa diferença em razão de o agrupamento ser uma ramificação (seita) ou uma formação “novinha em folha” (culto). Contudo, em termos informais, a diferença é sobretudo um julgamento sobre o relativo perigo de isolamento em que os membros do grupo incorrem. Uma seita é apenas um culto que não importa se irá cometer suicídio em massa algures em breve, ou se será semelhantemente nocivo para os seus membros, os quais poderiam de outro modo abandonar o grupo para sua própria segurança se não fossem a atração e as pressões do culto. Podemos argumentar, por exemplo, que o Socialist Workers Party britânico (SWP) se moveu no sentido de virar um culto assim que começaram a encobrir e a defender um membro seu acusado de violação, visto que não há nenhuma saída para além da denúncia e total oposição ao encobrimento ou então adotar ainda mais as tendências cultuais de defender a liderança a todo o custo.

“Não estamos a dizer”, observou Maurice Brinton em finais dos anos 1970, referindo-se ao grupo Jonestown que cometeu suicídio em massa em Guyana, “que todos os grupos revolucionários (nem mesmo aqueles de que mais veementemente discordamos) são como o Templo do Povo. Mas quem pode – com total honestidade – deixar de reparar nas inquietantes semelhanças ocasionais? Quem não está a par de seitas marxistas que se parecem com o Templo – no tocante ao ambiente psicológico que os permeia?” (Brinton 1979)

“A única coisa que lhes faltava”, acrescentou, “era a dedicação ao suicídio coletivo.”

11 Novembro: glória aos Mártires de Chicago!

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Neste dia em 1887, nos EUA, 4 sindicalistas anarquistas foram enforcados. Este acontecimento está nas origens da criação do Dia do Trabalhador (1º de maio), em memória a estes mártires que deram a vida pela emancipação dos trabalhadores.

Depois de serem acusados sem provas, por um jurado escolhido a dedo, de terem atirado uma bomba numa manifestação contra a violência policial (4 de maio), 8 anarquistas foram condenados.

Entre os 8 condenados, Oscar Neebe foi o único que escapou à pena de morte, tendo recebido ao invés 15 anos de penitenciária. A data das execussões foi definida para 11 de novembro. Luis Lingg suicidou-se na sua cela no dia 10 de novembro, por não querer dar ao estado o direito de tirar a sua vida.
Michael Schwab e Samuel Fielden pediram clemência ao governador do estado de Illinois, que foi aceite. Em 1893 seriam libertados depois de ter sido provada a sua inocência e de todos os outros anarquistas condenados.
Os restantes 4, Parsons, Spies, Engel e Fischer, mantiveram-se impávidos, conscientes da sua inocência, preferindo enfrentar a morte a ter que pedinchar pela sua vida pedindo clemência por um crime que estavam certos de não ter cometido.

Estas foram as últimas palavras de um dos mártires, Adolph Fischer:
“Irá chegar a altura em que o nosso silêncio será mais poderoso do que as vozes que vocês enforcam hoje”

https://www.iww.org/branches/US/CA/lagmb/lit/haymarket.shtml
http://www.portaloaca.com/historia/historia-libertaria/5221-los-martires-de-chicago-la-tragedia-de-chicago-ricardo-mella.html

Europeísmo, extrema-direita, e liberdade

 “A unidade é o objectivo para o qual tende irresistivelmente a humanidade. Mas ela torna-se um factor de morte, destruidora da inteligência, da dignidade, da prosperidade dos indivíduos e dos povos, sempre que se constitui fora da liberdade, seja pela violência, seja sob a autoridade de uma qualquer ideia teológica, metafísica, política, ou mesmo económica.”
– Mikhail Bakunin, Os Estados Unidos da Europa

Fundamentado por um pretenso internacionalismo e humanismo, o europeísmo de esquerda, em Portugal interpretado por LIVRE¹ e Partido Socialista, tem vindo a apresentar-se como antítese da extrema-direita conservadora e nacionalista, com a defesa da abertura de fronteiras e da partilha cultural e política através de órgãos comuns, que assegurariam a paz e os direitos humanos na Europa. Porém, em vez de conseguir concretizar uma oposição ao crescimento do ódio e da tensão de carácter chauvinista e xenófobo, a atuação dos europeístas tem vindo a estimulá-los.

Podemos encontrar razões económicas e políticas para o que pode parecer uma contradição, mas que na realidade é apenas uma decorrência lógica do reformismo europeísta.

O europeísmo carrega consigo uma visão economicista, de que um retrocedimento no processo da globalização dificultaria o desenvolvimento económico do território nacional, valorizando a entrada de capitais estrangeiros e a circulação facilitada da mão-de-obra e mercadorias. Na verdade, a União Europeia para as populações dos países economicamente semi-periféricos, da sua periferia interna, tornou-se apenas uma auto-estrada para a precariedade e um hino para a dependência externa. Num cenário em que a estabilidade das pessoas e os seus direitos foram e são constantemente atacados devido à permanência na zona euro, não seria de estranhar que a classe trabalhadora começasse a ser mais céptica ou até antagónica à ideia da moeda única, do mercado comum, do pagamento da dívida, e da União Europeia. Porém, a esquerda europeísta, ao rejeitar fazer a conexão dos vários pontos e concluir o óbvio, continua a propagar fantasias sobre o progresso e os benefícios do pacote europeu, deixando que a crítica seja feita pela extrema-direita, e na direção errada. O problema já não será necessariamente o euro, mas os imigrantes. O problema já não será uma União Europeia dos Estados e não dos Povos, mas sim uma União Europeia que ajuda refugiados de guerra. O problema já não será a falta de segurança provocada pelo capitalismo, mas o ataque à tradição e aos bons costumes. Parece quase que, com a expansão da extrema-direita na França, na Holanda, na Alemanha, etc, em breve continuaremos a ter uma União Europeia sim, mas da extrema-direita.

Notemos que mesmo não sendo europeístas, o Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda, ao colocarem à frente do não-pagamento da dívida e da saída do euro uma aliança com o Partido Socialista, promovendo a fantasia do fim do período de austeridade e do governo “de esquerda”, contribuem para a perda de foco. Tanto o suporte ideológico como uma crítica de segundo plano, um eurocepticismo tímido, são catalisadores da reação provocada pelos ataques da burguesia europeia.

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Imagem retirada de https://www.economist.com/blogs/graphicdetail/2016/05/daily-chart-18

Bakunin dizia que a nacionalidade nunca poderia ser elevada a princípio, mas sim ser apenas uma «consequência natural do princípio supremo da liberdade, deixando de ser um direito no momento em que se coloca quer contra a liberdade, quer simplesmente fora da liberdade», e quem diz nacionalidade, também pode dizer continentalidade. Quando se eleva a Europa a princípio, desconsidera-se tacitamente o princípio da liberdade. O europeísmo não é nada mais que uma deturpação burguesa do internacionalismo, mais próximo da imposição de uma comunidade imaginada, por parte da classe política e da burguesia, aos povos, do que do livre entendimento entre os mesmos. O nosso lado tem de ser o das classes populares e não o da “Europa”. Elevar a Europa a princípio de um projeto político é portanto não só autoritário, mas também uma colaboração de classes, sacrificando «sistematicamente os interesses reais a um, assim dito, bem público, que não é outro senão o das classes privilegiadas». Os “libertários” europeístas, de libertários não têm nada.

A alternativa internacionalista e socialista não é construir a união dos povos através dos corpos de repressão e exploração da classe trabalhadora. Nenhum estado ou parlamento poderá construir a unidade proletária internacionalista de que mais necessitamos. A alternativa internacionalista e socialista é construir essa unidade através das organizações da classe trabalhadora. Através dos sindicatos, das associações de bairro, das redes de solidariedade, do movimento estudantil, federados entre si até uma escala internacional. O começo da aproximação da central sindicalista revolucionária Industrial Workers of the World (IWW)  às centrais anarco-sindicalistas da Europa é um bom sinal para esta necessidade internacional. O investimento da Associação Internacional das e dos Trabalhadores (IWA-AIT) na Ásia, com a intensificação de relações com a organização indonésia anarco-sindicalista PPAS, e a campanha de solidariedade com a greve dos trabalhadores da UBER na Indonésia, também é exemplar para este fim e merece reconhecimento. É urgente cortar não só com o europeísmo, mas também com o eurocentrismo que lhe vem implícito.

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Imagem retirada da página da IWA-AIT

Em Portugal, onde podemos dizer que a maior parte do sindicalismo se encontra-se burocratizado e rendido à social-democracia, o nosso trabalho começa por construir e fortalecer organizações de tendência sindicalistas revolucionárias, sindicais, comunitárias, estudantis, como a Resistência Estudantil Luta e Liberdade, que para além de promoverem a combatividade no campo social, comecem a criar ligações com as outras organizações de tendência no mundo. Não estamos a falar portanto de um futuro longínquo, de um período hipotético que nem sabemos se irá chegar. Estamos a falar do aqui e agora. Temos o que fazer aqui e agora, e certamente não é legitimar as instituições que nos dominam.

Os laços internacionais da nossa classe devem ser construídos a partir da solidariedade e da articulação de lutas comuns, e não impostos por uma classe de burocratas. Esta é a única opção ao nosso dispor, se, é claro, estivermos realmente com os e as de baixo.

 


Notas:

¹ Dada a irrelevância política e social do LIVRE, uma figura que é mediática não por mérito próprio mas pelo oportunismo dos seus mentores, este acaba por ser apenas uma caricatura do europeísmo, sem impacto real e cada vez mais apenas um braço do PS.


Bibliografia

BAKUNIN, Mikhail, “Os Estados Unidos da Europa”, 1868

Embat, Análisis de Coyuntura 2016 para el Encuentro Libertario «Apuesta Directa», 2016 

no1, Uber drivers strike on Indonesia, 2017

A Destruição Ambiental d’O Capital: A resposta inadequada de Marx

(Texto de Ignacio Guerrero, originalmente publicado no site da Black Rose Federation, traduzido por Filipe C.)


Este artigo dedica-se a afirmações à volta do legado de Marx como pensador e a sua relação com a ecologia. Uma nota promocional para um volume recentemente publicado pela Haymarket Books sobre o assunto, Marx e a Terra por John Bellamy Foster e Paul Burkett, vai longe o suficiente para afirmar que os autores são os “fundadores do pensamento ecossocialista.” Esta narrativa é aqui repreendida em detalhe pelo autor, que conclui com algumas breves reflexões sobre uma visão alternativa do socialismo ecologicamente orientado.

Kohei Saito, escreve no Monthly Review em fevereiro de 2016 acerca dos “Apontamentos Ecológicos” (1868) de Marx, onde distingue ecossocialistas de “primeira-vaga” e “segunda-vaga”, em que os primeiros, uma onda mais antiga, reconhecem as referências passageiras de Karl Marx ao ambientalismo mas consideram-no no geral como um Prometeano, já os segundos afirmam Marx enquanto profundo pensador ecológico. O principal teórico a apresentar esta leitura alternativa tem sido John Bellamy Foster, autor de “A Ecologia de Marx” (2000) e “A Revolução Ecológica” (2009), coautor de “A Ruptura Ecológica” (2010) e “Marx e a Terra” (2016/7), e editor do Monthly Review.

Foster baseia a sua argumentação sobre o ecossocialismo de segunda-geração na declaração de Marx no final de “Maquinaria e Grande Indústria” no vol. 1 de O Capital, na secção acerca da agricultura industrial-capitalista, em que Marx afirma que, para além de “concentrar” o proletariado – a “força motriz histórica da sociedade” – nas cidades através da clausura dos bens comuns e o despojar do campesinato, o capitalismo “perturba a interação metabólica entre o homem [sic] e a Terra” no sentido que esgota o solo ao exigir extração insustentável do mesmo (637-8). O capitalismo procede então “ao minar as fontes originais de toda a riqueza: a terra e o operário.” (638). Marx declara até que “quanto mais um país, como os Estados Unidos, parte da grande indústria como plano recuado do seu desenvolvimento, tanto mais rápido é este processo de destruição” (638). No entanto vê tal degradação ambiental como dinamicamente “compelindo o restabelecimento sistemático [da interação metabólica] como uma lei regulativa da produção social.”

Marx não é muito específico aqui acerca do que um movimento para restaurar a “interação metabólica natural” entre a humanidade e o resto da natureza pareceria, e não clarifica se a sustentabilidade ambiental seria garantida numa sociedade pós-capitalista, ou se a questão do domínio da natureza vai além da luta humanística pela libertação do proletariado. Inicialmente, deve ser dito que um comentário passageiro sobre a degradação capitalista do solo não torna Marx um ecologista radical, especialmente quando justaposto com muitas das suas declarações mais Prometeanas. Neste sentido, os ecossocialistas da primeira-vaga expõem um argumento convincente. Não nos esqueçamos de que esta famosa afirmação sobre o solo vem no mesmo volume em que Marx efetivamente apoia o próprio despojar do campesinato por “dialeticamente” dar origem ao capitalismo e mais tarde socialismo e comunismo, de acordo com a teoria de estágios da história. Em “Maquinaria e Grande Indústria”, Marx descreve explicitamente a agricultura industrial-capitalista em larga escala como revolucionária, “na medida em que aniquila o bastião da velha sociedade, o ‘camponês’, e o substitui pelo assalariado.” (637), enquanto que no “Manifesto Comunista”, Marx e Engels empregam um raciocínio similar aplaudindo a burguesia por terem destruído a suposta “idiotice da vida rural.”

No geral, se considerarmos a quantidade de texto dedicada a questões ambientais no trabalho de Marx como um todo, vemos que o humanismo comunista supera bastante a preocupação pela ecologia na filosofia de Marx, particularmente quando as duas preocupações colidem, como fazem tanto nas análises burguesas e Marxistas (“trabalho-versus-natureza”).¹ Ainda na sua juventude, Marx cita favoravelmente a declaração de Thomas Münzer que, sob o domínio capitalista, “todas as criaturas foram transformadas em propriedade”, ao passo que devem “tornar-se livres.” Ele argumenta até que a “visão da natureza” capitalista implica “verdadeiro desdém, e degradação prática, pela natureza.” Além disso, Marx define o comunismo nos manuscritos de 1844 como “a resolução genuína do conflito entre [a humanidade] e a natureza” assim como entre humanos, e em O Capital, cita um relatório lamentando a invasão e colonização da região selvagem Escocesa por coelhos, esquilos e ratos após a clausura dos terrenos comuns, que tinham anteriormente mantido uma biodiversidade muito mais rica (894n33). No entanto, devemos provavelmente fazer uma distinção entre o jovem Marx e o seu eu dominante mais velho nestes termos, pois rapidamente após a sua jovial fase humanística, Marx passou a endossar sem crítica o industrialismo por forma a acomodar a sua teoria determinística da história. Por exemplo, no “Manifesto Comunista”, Marx e Engels louvam entusiasticamente a burguesia por ter “sujeitado as forças da natureza ao homem [sic]” e desenvolvido “maquinaria, aplicação da química à indústria e agricultura, navegação-a-vapor, caminhos-de-ferro, telégrafos eléctricos, cortes rasos de continentes inteiros para cultivo, e a canalização de rios”! O par celebra então a burguesia por ter criado a “base material” que estes teóricos supõem ser necessária para o alcançar do socialismo. Mas este mesmo viés, que permeia O Capital de Marx,² é ele próprio bastante questionável: remonta ao conflito de Marx com Pierre-Joseph Proudhon em “A Pobreza da Filosofia” (1847), em que o alemão afirma, contra o seu homólogo Francês, que o socialismo pode surgir apenas depois do completo desenvolvimento do capitalismo. Em O Capital, declara que o objetivo do trabalho associado “requer que a sociedade possua uma fundação material […] que por sua vez é o produto natural e espontâneo de um longo e atormentado desenvolvimento histórico” (173). Ele vai mais longe ao afirmar as bases técnicas da manufatura industrial como “revolucionárias, enquanto que todos os modos de produção anteriores eram essencialmente conservadores” e ao definir o “controlo e regulação social das forças da natureza” como uma parte central da alternativa anticapitalista (601-2, 617, 927). O revolucionismo do capital é ultimamente revelado para Marx na medida em que expande, “treina, une e organiza” o proletariado (449, 929).

Porém esta abordagem levanta a questão: porque é que não poderia o comunismo desenvolver-se historicamente de uma forma igualitária através do trabalho cooperativo e o avanço coletivo da tecnologia, ou do socialismo agrário? Porque é que é necessário ter capitalismo como uma pré-condição para a libertação? O raciocínio mecânico de Marx aqui não é convincente, e francamente, é anti-ecológico, opressivo e racista: vejamos os comentários de Engels (1848) louvando o estado colonizador-colonial dos EUA por ter apropriado através da guerra a Califórnia e o Sudoeste dos “preguiçosos Mexicanos [sic], que não conseguiam fazer nada com aquilo.” Engels é efusivo acerca desta espoliação imperialista:

“Os enérgicos Ianques através de rápida exploração das minas de ouro da Califórnia aumentarão os meios de circulação, [e] em poucos anos irão concentrar uma densa população e comércio extenso nos mais adequados locais na costa do Oceano Pacífico, criar grandes cidades, abrir comunicações por barcos a vapor, construir um caminho-de-ferro de Nova Iorque a São Francisco, [e] pela primeira vez realmente abrir o Oceano Pacífico à civilização […].”

Apesar deste ser Engels a escrever, tal raciocínio produtivista não está ausente em Marx, cujos primeiros artigos jornalísticos sobre a Índia condenam a “adoração brutalizante da natureza” que ele afirmava como sendo evidente na vida de aldeia tradicional lá antes do colonialismo Britânico: ele estava claramente ofendido que numa sociedade Hindu, o “homem, soberano da natureza” iria “cair a seus joelhos em adoração a Kanuman, o macaco, e Sabbala, a vaca.”[3] Marx também afirma chauvinisticamente e enganosamente que os bens comuns foram uma invenção Teutónica (Capital, vol. 1, 885). Na sua discussão do trabalho e do processo de valorização no Capital, além disso, o comunista alemão reitera a sua visão da humanidade como um “poder soberano” sobre o resto da natureza, e parece defender uma visão tipicamente burguesa da natureza como uma fonte de extração, declarando que “todas as matérias-primas são um objeto de trabalho.” Também cita sem crítica alguma a observação de James Steuart que os recursos naturais da Terra “parecem […] ser renovados […] da mesma forma que uma pequena quantia é dada a um jovem homem, por forma a colocá-lo no caminho da indústria, e de fazer a sua fortuna” (283-4). Em paralelo, Marx projeta a competição burguesa sobre o mundo natural, tal como na sua caracterização da evolução como a “guerra de todos contra todos” (477), e exagera a distinção entre humano e não-humano na sua discussão da consciência, autoconsciência, e uso de ferramentas (284-6).

Adicionalmente, o privilegiar de Marx do proletariado industrial enquanto sujeito revolucionário leva ao rebaixamento do campesinato – que, se olharmos para a história (as Revoluções francesa, mexicana e russa) pode na verdade ser altamente militante – e até à celebração da sua transformação coerciva em classe trabalhadora como um avanço histórico “revolucionário” para encaixar na sua apresentação determinística. Porém no final da sua vida, Marx repensa esta ilógica insensível numa séria de cartas com a esquerdista russa Vera Zasulich (1881), nas quais o alemão imagina um caminho alternativo até ao comunismo na Rússia que evitaria a “necessidade pré-existente” do capitalismo, baseando-se no sistema mir ou obshchina (comunidades rurais russas) – desde que tal movimento fosse ajudado por revoluções proletárias na Europa Ocidental.[4] Claramente não foi esta a abordagem tomada depois de 1917 por Lenin, Trotsky, e Estaline, que oprimiram tantos milhões e devastaram grandiosamente o meio ambiente (e.g. o Mar Aral, Chernobyl) através da sua imposição do capitalismo estatal, um projeto que avançaram em nome de Marx.

No entanto Saito, escrevendo acerca dos “Apontamentos Ecológicos” de Marx de 1868, tem uma interpretação diferente, alinhada com a análise de Foster e da segunda onda do ecossocialismo. Saito admite a hipótese de, tivesse Marx sido capaz de integrar as suas investigações científicas – especialmente as suas investigações sobre o trabalho de Carl Fraas sobre a desflorestação – no volume 2 de O Capital, o resultado teria sido “uma muito mais forte ênfase na perturbação da ‘interação metabólica'” entre a humanidade e a natureza no seu trabalho. Ainda assim isto é algo especulativo. A citação de Saito da crítica de Marx nestes apontamentos aos camponeses capitalistas por insustentavelmente explorarem gado abatendo vitelas pela carne ao invés de as usarem para produção leiteira ao longo de uma vida inteira dificilmente sugere que o comunista alemão reconhece a autonomia do mundo não-humano ou favorece a libertação animal. Apesar de Saito estar certo ao identificar uma mudança no pensamento de Marx sobre a natureza ao longo do tempo, com a sua posição tardia ecoando a da sua juventude, não podemos ignorar o facto de Marx ter sido a maioria de sua vida um produtivista que deteve uma visão relativamente não-crítica da indústria e da tecnologia. O Prometeanismo de Marx estava na verdade ligado ao seu estatismo, dado o seu reconhecimento em O Capital do poder repressivo-transformativo empunhado pela burguesia através do Estado, e as suas esperanças dialéticas de usar este mesmo aparato para transformar por sua vez o capitalismo. O teórico crítico Herbert Marcuse estava por isso certo em criticar o “hubris do domínio” evidente na atitude predominante de Marx em relação à natureza, e o seu camarada Theodor Adorno tinha razão em avisar que Marx pretendia “transformar o mundo inteiro numa gigante workhouse.”[5]

A extensão das preocupações ecológicas de Marx estão limitadas pelo seu antropocentrismo (isto é, um viés a favor da humanidade face ao resto da natureza) assim como o seu produtivismo. Assim expressando alguns comentários críticos ecológicos num acorde menor no Capital, vol. 1, e nos seus apontamentos científicos. Por esta razão, os ecossocialistas da primeira-vaga parecem mais corretos nas suas análises do que os de segunda-vaga como Foster e Saito, que exageram a sua causa. É inegável que Marx inspirou pensadores críticos ecológicos, particularmente com a sua análise sobre a “força motriz e propósito determinante da produção capitalista [ser] a autovalorização do capital ao maior nível possível” (Capital, vol. 1, 449), e o seu sumário elucidante acerca das máximas que governam a sociedade burguesa: “Acumular! Acumular! Eis Moisés e os profetas!” (742). A economia política certamente sustenta o desenvolvimento inovador de Allan Schnaiberg do conceito passadeira de produção, através da qual a destruição ambiental é mantida e acelerada sob o capitalismo devido à dependência dos proprietários, do Estado, e de sindicatos amarelos do crescimento económico, enquanto Jason W. Moore, autor de “Capitalism in the Web of Life” (2015) e editor de “Anthropocene or Capitalocene?” (2016), desenvolve a sua abordagem da discussão de Marx sobre a “ruptura metabólica” entre a humanidade e a natureza.

Ainda assim o anarquismo apresenta uma muito mais consistente perspetiva ambientalista, considerando a amplitude da investigação científica e geográfica feita por Piotr Kropotkin e Elisée Reclus, a filosofia liberatória da ecologia social de Murray Bookchin, e a tentativa sindicalista-verde de Judi Bari de unir a Earth First! com trabalhadores de madeira contra as empresas madeireiras no noroeste da Califórnia (1990). Desta forma, o anarquismo não prescreve indústria em larga-escala ou exploração capitalista como “males históricos necessários” mas ao invés abre a possibilidade da libertação direta da humanidade e natureza através da organização coletiva e federativa dos oprimidos contra o Estado e contra o capital.


Notas de autor

[1] Ver Marx, Capital, vol. 1: “Portanto, uma vez que a maquinaria por si própria reduz as horas de trabalho, mas quando empregue pelo capital as alonga; uma vez que empregue pelo capital aguça a sua intensidade; uma vez que por si próprópria é uma vitória do homem [sic] sobre as forças da natureza mas nas mãos do capital torna o homem o escravo dessas forças […]” (568-9).

[2] “O país que for mais desenvolvido industrialmente apenas mostra, aos menos desenvolvidos, a imagem do seu próprio futuro” (Capital, vol. 1, 91).

[3] “Marx and Engels, Collected Works, vol. 12” (New York: International: International Publishers, 1974-2004), 132. Kanuman também é conhecido por Hanuman, enquanto que Sabbala é melhor conhecida como Kamadhenu.

[4] Ver Teodor Shanin, “Late Marx and the Russian Road” (New York: Monthly Review Press, 1983).

[5] Herbert Marcuse, Contrarrevolução e Revolta, (Boston: Beacon Press, 1972), 59-62; Martin Jay, The Dialectical Imagination (Berkeley: University of California Press, 1973), 57.

 

Análise das diferentes visões do sistema universitário a partir de uma perspetiva antropológica

Tradução por Liliana Silva de “Análisis de la plurivisión del sistema universitario, desde una perspectiva antropológica“, de Nuria E., originalmente em Regeneración Libertaria.

Os motivos que levaram à realização deste artigo de opinião, basearam-se na observação de um contexto universitário, do qual participo enquanto estudante, mas que parece ser transversal a diferentes universidades de Madrid. Esta observação foi dada através de encontros e conversas informais com universitárias de outras áreas formativas e outras universidades. Com o tempo e a repetição deste tipo de encontros e conversas, pude constatar um padrão que se reproduzia sistematicamente nas diferentes experiências dos estudantes. Por ele, este artigo é apresentado, não tanto como crítica a um sistema cujo mau funcionamento é estrutural, mas sim como chamada de atenção sobre uma realidade que pode ser transformada, se se aproveitar a oportunidade de estabelecer relações de diálogos e performatividade entre os diferentes estratos universitários, principalmente entre alunos e professores.

Quando falamos das diferentes visões do sistema universitário, estamos a referir-nos às diferentes formas em que este é entendido, centrando-nos especificamente nas diferenças sociais e de geração.

Desde sempre, a Universidade como entidade, tem sido reconhecida coletivamente como um espaço de formação intelectual e reconhecimento social. Quando os filhos de operários começaram a conseguir aceder-lhe, aguçou-se ainda mais esta perspetiva, diferenciando-os como “operários de primeira categoria.” No entanto, também serviu para que a universidade fosse preenchida com conteúdo social e político, para advogar uma sociedade mais justa.

A geração dos nossos pais e professoras, cresceu com esta perspetiva, onde pouco a pouco a universidade foi adquirindo uma matriz ideológica de base marxista e revolucionária. Uma universidade, onde as diferenças de classe continuavam evidentes, mas onde se lutava por erradicar e por dotar de ferramentas um povo que saía de uma ditadura de mais de 40 anos. Os operários deixaram de estar presos à mão de obra e trabalhos de pouca categoria e começaram a ascender socialmente. Esta realidade, foi adquirindo peso na ideologia de superação operária, fazendo com que aqueles que haviam acedido a estudos superiores e, especialmente, aqueles que não haviam conseguido cursá-los, pretendessem garantir um futuro económico e educativo superior às gerações futuras.

Consequentemente, criou-se um imaginário coletivo que idealiza a universidade como gérmen das lutas sociais, como última etapa para uma vida de êxito social e económico, como garantia perante todas as dificuldades futuras. Quantas de nós não crescemos com o slogan “para seres alguém na vida, tens de ir para a universidade”, como se os milhões de pessoas que não terão podido ou pretendido, estudar na universidade, se tivessem anulado a si mesmas pelo mero feito de continuarem a ser operárias. Como se uma filha com título universitário valesse simbolicamente mais do que os seus pais, ou do que o esforço dos mesmos para garantir os seus privilégios. Quantas estudantes não se têm visto arrastadas para a universidade, sem terem uma ideia clara e orientada, do que é que queriam conseguir nas suas vidas, só porque é “o que esperam delas”.

Contudo encontramo-nos aqui, a seguir estudos superiores. A geração mais formada da nossa história. A que tem o futuro mais imprevísivel, a que menos se mobiliza, a que mais passividade acumula e a que mais murmura nos corredores o seu descontentamento formativo, sem saber focalizá-lo. De onde terá vindo a promessa de um futuro profissional estável ? Porque é que a nossa graduação nos faz mais “alguém na vida” mesmo trabalhando atrás da caixa registadora de um centro comercial, do que ao resto dos colegas sem graduação? Onde foi parar o gérmen das lutas trabalhadoras numa universidade onde, se trabalhas enquanto estudas, te penalizam por não assistires às aulas?

Não quero parecer derrotista, apenas evidenciar as realidades que cruzam os corredores de qualquer instituição de ensino superior. As dúvidas que nos colocamos enquanto jovens estudantes, sem um futuro definido e que nos continuam a vender o conto do capitalismo tradicional, quando a nova realidade supera e destrói qualquer dessas percepções neoliberais. Evidenciar a situação de queda em que sentimos que se encontram as nossas universidades, e a monótona resignação com que a cada dia acudimos uma aula onde copiamos passivamente os mesmos diapositivos que o docente da cadeira nos quer ler, onde a crítica e o livre pensamento são silenciados com “é que isso não é assim e ponto”*, ou professores que te incentivam a dares a tua opinião, especialmente se é contrária à sua, para te humilharem em público de maneira nada pedagógica.

Naturalmente, estes casos não são a totalidade, também há professores que no seu idealismo, tentam vender-te uma imagem que se desarma na sua própria bondade, professores que te contagiam com a sua paixão ou aqueles que, sabendo que este processo é puramente superficial, tentam facilitar-te com novas ideias e propostas. Alguns, embora sejam poucos os casos, apoiam ideológica e posicionalmente algumas das propostas alternativas, fomentadas desde o gérmen universitário. Algumas tentam romper e desconstruir o elitismo intrínseco à formação universitária, e há também os que ainda resistem a implementar nas suas metodologias docentes, as restrições abusivas dos novos planos de estudos, facilitando a comunicação, o trabalho e a aprendizagem coletiva.

Não creio que esta situação, se deva só a um problema de gerações ou de elitismo académico, mas sim a um problema de perda de contacto com a realidade. Muitos professores dizem entender a situação dos estudantes menos privilegiados, se bem que nunca estiveram na mesma situação ou quem sabe já se tenham esquecido e guardam uma memória difusa e romântica a esse respeito. A sensação que permanece na comunidade estudantil é a de não ter acesso real aos seus professores, a de não aprender, a de perder a ilusão daquilo que, num imaginário hegemónico e herdado, tinham idealizado.

Não é só um problema na relação entre docentes e alunas, cuja comunicação não rompe hierarquias formativas e é restrita a uma aula; mas algo que vai mais além, que afeta a estrutura global do sistema educativo, que permite jovens cada vez mais preparados segundo dizem, mas pior formados segundo parece. Um problema que, embora não seja fácil de resolver, é necessário, e passa por uma renovação absoluta e desde a base, do sistema educativo, social e legal.

Nuria E.

Notas da tradução:

*ou com “é uma questão interessante mas não nos podemos estender porque temos de cumprir o programa”, como é também frequente ouvir nas universidades portuguesas.

O Paradigma da Revolução Espanhola e o Movimento Anarco-Sindicalista

Dia 19 de Julho de 2017, fazem 81 anos desde o começo da resistência popular contra o golpe de estado fascista em Espanha, o começo daquele que é provavelmente o processo revolucionário que mais marcou o ideário do movimento anarco-sindicalista internacional até aos dias de hoje. Falar da Revolução Espanhola é falar de uma revolução que apesar de tudo o que nos demonstrou ou reafirmou ser possível, foi derrotada. O movimento anarco-sindicalista, na sua generalidade, tem explicado esta derrota simplesmente como derivada da traição do PSUC (estalinista) e do virar de costas das democracias burguesas europeias. Tem faltado um reconhecimento e uma autocrítica sobre como o modelo de atuação anarco-sindicalista também pode ter tido a sua parte da responsabilidade nesta derrota; pouco se tem debruçado sobre a traição dos dirigentes da CNT à classe trabalhadora e a forma como o movimento não teve capacidade de resistir à degeneração levada a cabo pelos mesmos.

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Sociedade e Ecologia – Parte II

Texto de Murray Bookchin (1921-2006)

Aquilo a que anteriores gerações chamavam «natureza cega», para significar a ausência de qualquer sentido moral na natureza, transformou-se numa «natureza livre», uma natureza que lentamente vai encontrando uma voz e um sentido para aliviar as inúteis atribulações da vida, em todas as espécies, numa humanidade altamente consciente e numa sociedade ecológica.

A ecologia social

A abordagem da sociedade e da natureza que é feita pela ecologia social pode parecer mais exigente intelectualmente, mas assim evita o simplismo do dualismo e a rudeza do reducionismo. A ecologia social tenta mostrar de que modo a natureza lentamente se introduz na sociedade, sem ignorar as diferenças entre uma e outra, por um lado, nem a extensão pela qual se fundem, por outro. A socialização diária dos jovens pela família não radica menos na biologia do que os cuidados diários aos velhos pela instituição médica radicam nos duros fatos sociais. Do mesmo modo, nunca deixamos de ser mamíferos que ainda mantêm os mesmos impulsos primários naturais, mas institucionalizamos esses impulsos e a sua satisfação numa ampla variedade de formas sociais. Assim, o social e o natural continuamente se interpenetram nas atividades mais comuns do dia a dia, sem perda da sua identidade, num processo partilhado de interação e interatividade.

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Sociedade e Ecologia – Parte I

Texto de Murray Bookchin (1921-2006)
A humanidade tem sido difamada pelos próprios seres humanos, ironicamente como uma forma de vida amaldiçoada que acima de tudo destrói o mundo vivo e ameaça a sua integridade. À confusão que já temos acerca do nosso próprio tempo e identidade pessoais, junta-se agora a confusão de que a condição humana é vista como uma espécie de caos produzido pela nossa tendência para a destruição, e a nossa capacidade para o exercício dessa tendência é tanto maior precisamente porque possuímos razão, ciência e tecnologia. É até este ponto absurdo que certos anti-humanistas, biocentristas e misantropos conseguem levar a lógica das suas premissas.

Os problemas que muitas pessoas enfrentam hoje em dia para «definir-se» a si próprias, para conhecerem «quem são» — problemas que alimentam a vasta indústria das psicoterapias — não são problemas apenas pessoais. Estes problemas existem não apenas ao nível dos indivíduos mas na própria sociedade moderna, entendida como um todo. Socialmente, vivemos numa desesperada incerteza sobre o modo como as pessoas se relacionam entre si. Não é só como indivíduos que sofremos de alienação e confusão acerca das nossas identidades e objetivos; toda a nossa sociedade, concebida como entidade, parece confusa quanto à sua natureza e direção. Se sociedades mais antigas tentaram fomentar a crença nas virtudes da cooperação e do apoio, desse modo atribuindo um sentido ético à vida social, a sociedade moderna fomenta a crença nas virtudes da competição e do egoísmo, assim despojando a associação humana de todo o seu significado — excepto, talvez, enquanto instrumento de ganho e de consumo sem sentido.

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